O Outro Lado da Via

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“Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere”
(Orides Fontela)

Há cansaço no seu rosto pequeno meio arredondado. Suor desce em correnteza, irritando os olhos coçados com os dedos, ele tem pressa de se esconder do sol, mas caminha sob ele para não perder mais tempo descansando sob árvores. Na mente a voz da mãe gritando a vontade à sua semelhança, realizar os sonhos que ela tinha para ele sem nenhum resquício de dúvida: “meu filho vai crescer sadio e forte, vai se casar com uma moça da cidade e cuidará de nossa família até a morte. Caso a sorte em Deus não falhe, terá uma farmácia e o conforto chegará, do suor, da dignidade do homem que trabalha”. Mas as palavras lhe empacavam os passos, então canções serviam para acelerá-lo em alcanço da cidade, seu destino nesta hora, onde o menino dos cabelos cacheados habita ocultado de seus olhos resignados da sensação de tê-lo.

Já é tarde e o crepúsculo do verão faz o dia fenecer num espetáculo sem espectadores, com escassez de aplausos e, sobretudo, acuidade. As tardes nunca pareciam iguais ao seu olhar, porque ele a sentia dentro do peito como se sentisse uma saudade abrindo sem dó uma cratera negra sem fim. O que fazer agora era o que ele pensava sozinho, enrolando os dedos nos montinhos crespos do cabelo curto. Puxou o pai na fisionomia do rosto, um negro belo como diziam pela cidade, que deixava as moças todas penduradas pelas janelas, hipnotizadas pelos braços torneados do crioulo de lábio rosado e carnudo, olhos delineados e maçãs da face fortes como o peitoral. Porém só havia visto o pai algumas vezes, poucas vezes, contudo suficientes para comprovar os falatórios, portanto não sentia amor por ele, nem a ausência, apesar da crença de que a ausência seja sentida apenas depois da experimentação do convívio. Entretanto não sabia ao certo o que pensar a respeito do afeto, não do modo de ser pai e filho, bem como homem e homem, mas sentia medo de pensar se o pai presente lhe despertaria sentimentos corrosivos no peito, como o garotinho dos cachos negros e olhos vivos que lhe sorri, ao vê-lo entrando na cidade em suas havaianas verde e jeans rasgado.

O menino sabia encantar com seu sorriso torto, seus olhos curvilíneos, escondendo a íris carregada de brilho e redenção. O coração acelerado como uma bomba prestes a explodir e perfurar o peito frágil, expondo os ossinhos da costela. Nunca quando não estava em apresentação na escola a boca secava tanto, melhor seria fazer três provas orais de inglês e conjugar o verbo to be cara a cara com a jovem professora americanizada. 

Todos os pensamentos sempre foram inevitáveis no momento desse encontro, nunca descobrira saída que amenizasse o estado embriagado que se faz estafa:

- Que foi? - Os cachinhos pretos balançam, só isso importa, mais nada. Alguns fios irregulares tapam os olhinhos do rapazote sorridente e conversador, empurrando a bicicleta pelo guidom com as duas mãos, enquanto os olhinhos puxados sedentos do observar se contemplam no silêncio interpessoal – Que foi, Diogo? Tá parecendo bobo.

- Não é nada não!
- Sua mãe te bateu?
- Não.
- Então por que tá assim?
- Por quê? ...sei lá. 

Um caminho longo por uma via dupla larga e conflituosa. Carroceiros com chapéus de palha, crianças correndo em meio aos calhambeques e zero quilômetros na direção do poente, enquanto dois garotos dividem espaço entre a tradição do corpo e a modernidade do concreto pela alameda e toda a sua extensão, reluzindo em asfalto preto. A fumaça dos ônibus velhos em circulação esconde o verde das folhas de uma videira estendida em praça pública, na calçada larga um bulevar falseado de pequenas flores amarelas, construídas pela prefeitura em um concurso de artes para o bem do meio ambiente, estimulado nas escolas. Cada qual em seu lugar esperando o momento certo de ser, onde querem que o seja, apesar da caminhada deslocá-los para outros espaços físicos e o pensamento de Diogo introvertido no seu estômago. 

Tropeça em latas, papeis e pedras jogados pela rua, porque viaja em si enquanto os olhos se encantam à mensagem construída:

- Que foi?
- Nada.
- Pode ser nada, mas que tá esquisito hoje, cê tá!

O mundo é construído de palavras que não são faladas, gestos não interpretados e sentimentos gerados no ventre da humanidade, enquanto o sol se põe em seu espetáculo diário despido de qualquer glamour pirotécnico. Apenas crepúsculo constituído pelo firmamento, o ar e o espaço, pois mal sabem eles que o ocaso do momento tem durabilidade inferior a uma hora e vinte e cinco minutos em um dia de domingo quente perdido no mês de dezembro, quando suas auroras se perdem lentas por cada marcha correspondida a períodos variáveis da luminosidade decrescente de suas virtudes, agora responsabilidades, forçando traço no horizonte, dia após dia; sempre ao ocaso do sol quando já não mais percebe-se os efeitos dos raios nem os contratempos da atmosfera.

Ambos se partem, seguem em busca de si, embora perdidos nestes intervalos do tempo seriado, influídos em difusão e luz, camada por camada até o instante do desaparecimento dos seus astros amamentados pela fortificação e direcionados ao saber, crescentes. 

Potentados em sua mocidade ambos esbravejam, assoviam e chutam um ao outro em consideração à amizade fluente que os mantêm pela alameda interminável, sem a direção do tempo, que na cidade, está parado desde os dias em que o leite era comercializado em potes de vidro. Agora, talvez uma nova era se faça com permanências e a novidade na face da salgadeira Doricélia, gritando alto a promoção das esfihas recheadas com creme de queijo e milho. Os meninos se perdem apenas na vontade e continuam a caminhada.

***

Entre tantas auroras e depois de tantas se constrói homens, derruba-se casas enquanto outras se erguem, mas o vento continua em uivos e sopros anunciando a face de cada dia que não se perde e nada se encontra. Depois de anos o silêncio ainda os contempla, embora diferenças maiores se alojem nas distâncias que os ordenam:

- Cê tem medo da morte, Diogo?
- Da morte não, da vida.
- Não entendo.
- Nem é pra entender.
- Sei. Agora cê é filósofo.
- E quem não é?
- Quem!? 

Uma pedra sobre as águas da bacia do rio dos bois no meio das folhas e do cheiro de estrume. Agora contemplam identidades singulares dos diferentes dias que lhes trouxeram descontração e emoções afáveis. Não se olham, mas observam a imensidão do rio, escoando lentamente aos seus olhos que não vêem a velocidade que o seu fluxo esconde submersa a lâmina difusa pelo ar, ao separá-los. 

Diogo tem certeza do que quer falar, entretanto a boca não exprime seus sentidos, muito menos o corpo deitado sobre a pedra com os olhos mirados para o céu debaixo das árvores, vendo os poucos raios solares, penetrando entre os galhos. Já não existem cachos pretos nem mesmo os cabelos crespos do Diogo em moinhos, as lâminas controlam com praticidade seu encorajamento a sociedade dos sonhos, onde suas palavras ganham vida e sua voz é ouvida por mais de uma centena de pessoas, sem que diga sequer uma palavra:

- Lá é bom?
- Hã? 
- Faculdade. Gente, cidade grande. É igual na televisão? 

Diogo percorre o caminho do vento, passeia a visão nas unhas encravadas dos pés do moçoilo e vê que os pêlos nas pernas são quase crinas. Os cachos dele já não existem mais, mas os pêlos escorrem lustrosos sobre a sua perna torneada e escura. Seriam claras se morasse na cidade, sem tomar sol, sem ordenhar. A ausência dos cachos o incomoda, embora reconstrua na mente os momentos perdidos nos passeios de bicicleta e beliscões.

Não resiste. Belisca.

- Por que fez isso?
- Não sei, impulso.

Agora ele não tinha palavras. Diogo era um amigo estranho e um beliscão depois de anos ausentes não era concebível. Talvez por serem homens, agora ou simplesmente, por não haver motivo. Não reconhecia Diogo, mas o conhecia o suficiente para reparar em sua pele negra com brilho, olhos repuxados e uma imensa boca, ostentando o mais belo sorriso de descontentamento. Não entendia as mudanças, ou apenas a falta de atenção despendida ao amigo noutros tempos, agora não era o pequenino Diogo, era um Diogo cheio de palavras bonitas, apesar do mesmo paraíso de silêncio. O moçoilo arrebatou a integridade emocional do amigo com seu olhar fixado, atravessando o corpinho esguio adequado com exatidão na malha branca e o jeans escuro. Em lugar das havaianas um Adidas leve como pluma. 

- Que foi? 

Diogo não pensa. Não pode! Sequer uma palavra sai de si, mas sente vontade de demonstrar toda a riqueza que o seu peito guardara durante a evaporação dos dias. Então lhe foi à boca, premissa mais conivente estendida pelo amigo, selando o que o homem não nega no princípio de sua vida, mesmo subjugado pelos parâmetros. Depois de retraída a face com o disfarce de um cochicho desnecessário no ambiente, devagarzinho se afasta, cabisbaixo. Olhar perdido no horizonte de água e céu. Retira do bolso um envelope, estendendo-o ao amigo. Aterrissa de sua nuance. 

- Que é?
- Você não muda. Leia!

Hesitante ele toma para si o que lhe é dado. 

- Sabia que o crepúsculo vespertino corresponde ao período de variação de luminosidade decrescente no horizonte do ocaso, logo após o ocaso do Sol, até o instante em que não são mais percebidos os efeitos dos raios solares na atmosfera? – Olha do lado e não mais vê o amigo. Assusta-se ao se levantar erguendo o pescoço para tentar avistá-lo indo embora, mas o encontra distante se despindo sobre o píer. Sente-se aliviado e avista do outro lado as páginas sendo levadas pela correnteza do rio. Talvez ao encontro do passado e do futuro que lhes reservam águas tão brutas e contempláveis.

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