Final feliz

Graça Craidy, Centro Cultural Erico Veríssimo, Porto Alegre, RS, Brasil


Adelino era filhote de caseiro na fazenda do sinhô César Alcântara. Pastoreava o gado, ardiloso em cuidados e asseio. Era homem do campo, moço educado a galopes. Ilustrados arreios, não se amontoou em frases. Erigiu-se, como sinhá Analice Alcântara lho referia. Adelino enamorou-se cedo. Quando aos oito foi entregue à família Alcântara, viu crescer a pequena Flor de Lis, da sua idade. Era paixão recíproca a brotar por entre as folhas e os bagos, o limo e o cerrado de açucenas.

Homem bonito, dos bravos, peão direito, negro forte.
Adelino até parecia gente a se ver sentado à mesa
ao lhe ser permitido amar
ao ter o riso na prosa
a se ver dentro e fora daquele lugar.

Flor de Lis Alcântara nasceu doente. Desenganada dos médicos, foi morar com os tios na fazenda Dois Lagos. Cresceu admirada por todos e coberta de cuidados que faziam inveja a qualquer princesa. A tez alva, enrubescia-se em sutileza ao nascer do sol, e os pés sempre calçados nunca sentiram a correnteza dos regos. Enamorou-se de Adelino ainda na adolescência, depois de uma crise de anemia profunda e asma. Para não contrariá-la, lhe foi consentido o anseio. Ainda que sobre vigília, ainda que houvesse poréns.

Mocinha doce, tal como orvalho a escorrer das pétalas.
Altruísta, Flor de Lis até parecia homem a se ver sentada à mesa
ao lhe ser permitido amar
ao ter a fala na prosa
a se ver dentro e fora daquele lugar.

Flor de Lis foi educada à moda da cidade, para onde era levada todas às segundas-feiras, depois dos quinze. Adelino se enfurecia em brasa pelas ações daqueles dias. Repudiava os valores que a namorada trazia dos livros, escolas, cidade e família. Foi quando, em vão, decidiu-se que deveriam fazê-lo como todos das suas idades: o matrimônio e os filhos.

Mas Flor de Lis,
Ela temia o tempo
a imatura idade
a mocidade perdida
a doença vincenda
o que não vivera
o que viveria

Flor de Lis escolheu se mudar. Encerrou-se das ideias do casamento de Adelino; para ela, apenas um peão de fazenda, sem trato nem gado para a renda. E tão negro como a penumbra daquele lugar. Adelino chorou. Sentiu-se fera, frágil, inapto: descomunal. Mas só lhe restava aceitar a dor.

Após um par de meses, ao visitar Dois Lagos Flor de Lis apresentou a todos o Reginaldo Alférez, um filho de jovens comerciantes do sul goiano. Ela exibiu elegância, fluência e habilidades, e, em seguida, leu as palavras nos olhos que da boca Adelino não pronunciava. Ele estava contido, apagado, resumido em cólera:

"Que bom que eu não tinha um revólver"*, mas ela havia de partir
pelas mãos dele que a queria mais.
Diante tantas insurgências
fez atravessar com a lâmina o baço
abraço de sono denso
desmaio, desamor...

(D) Ela que não se queria casada.
(D) Ela que não se queria contente.


*Da música Bagatelas interpretada por Adriana Calcanhotto, escrita por Frejat e Antonio Cicero.

PEREIRA, Túlio Henrique. Final feliz. In: MARQUES, Eliane; ELY, Lúcia Bins. Ovo da Ema, n. 2, ano 3. Porto Alegre: Escola de Poesia, 2016. pp. 73-75.

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