À Flor da Pele

Depois de seis semanas impetuosas em busca de mais uma razão do meu viver, eu finalmente estava ali, admirando uma reprodução pobre e desbotada de Little spooners sunset, de Norman Rockwell, em uma parede cor abóbora. Sem dúvida um crime de péssimo gosto. Estava no meu terceiro cafezinho, já tinha emaranhado e desemaranhado as felpas da grenha, andado de um lado para o outro, observado os rastros marcando o assoalho de lajota encerado e até sorrido com Hilst. A Hilda.

Não me continha em minha ansiedade. Se não fosse pelo estímulo de Érica, uma gordinha ruiva, balzaquiana incrível sob sua pele feminina e única melhor amiga, jamais teria preenchido o meu cadastro naquela agência fechativa: preço baixo, sigilo, ambiente requintado e segurança. Sem dúvida reconfortaria o meu desespero de solidão com mais um gatuno ou a tentativa frustrada de outra viagem ao Havaí. Eu sabia do que queria, como e porque me mantinha naquele lugar. Tudo era muito claro, bem como quando conquistei a estabilidade profissional almejada, o respeito e a educação planejados e o consentimento familiar postergado por tantos desencontros. Estava pronto, lúcido e receptível a toda e qualquer possibilidade de colisão. Cansado de ser o só. 

Pelas tantas, durante a espera, uma fresta de luz invadiu o espaço da sala, roubando atenção e sensivelmente aguçando a curiosidade. Atravessava o vidro e as persianas horizontais, tocando a folhagem de um arbusto suntuoso esgueirado no canto direito do cômodo, entre o sofá e a janela. 

A moça da recepção era hábil. Novidade. Ao mesmo tempo em que conversava no programa de mensagens instantâneas, atendia ao telefone e os clientes, acomodados por ela em outras salas, e prestava bastante atenção na minha perna inquieta ou em minhas mãos agitadas. Estava ávido por aquele porvir, muito mais do que quando aguardava o resultado da solicitação de financiamento do meu primeiro veículo, há doze anos.

Não havia parâmetros para o instante. Nenhuma referência de anos de leitura da Marie Claire, sequer um conselho bonachão da Érica, esperançosa para que eu encontrasse aquilo que denominava felicidade. Nem mamãe se fazia presente com suas advertências e crendices comuns. Eu estava só, mais uma vez, porém, à espera do fim, contemplando a iminência de uma solidão obsoleta e tardia. Não podia me portar habilidoso, nunca o fizera antes. Não conheci ninguém que tivesse passado pela mesma situação. Foram anos dedicados aos estudos, outros tantos à carreira e muito mais constituindo aquilo que todos disseram se tratar de equilíbrio. Nenhum deles experienciado por um toque ou beijo, singelo que fosse. 

Como mamãe costumava dizer, para ela, eu era donzelo e não gay. Não deveria aceitar o que tantos diziam ao ouvido para que eu seguisse. Zelosa mamãe, mal sabia o deleite arraigado de sítios virtuais em noites brandas trancado em meu quarto. 

Enfim, já havia se passado muitos minutos, além do combinado. Não me aguentava em ansiedade. Sentia-me a princesa a ser arrebatada por seu príncipe em um cavalo branco rasgando a mata ao meu encontro. Vicissitude sublime saltitando o coração ao mesmo passo, dada a calmaria. Não sabia o que sentir, nem ao menos o que pensar. Embora ele pudesse estranhar o meu sorriso solto e a minha temporária timidez, não haveria motivos para não se encantar por mim. Poderíamos passear pela estrada do lago, depois ir ao teatro e quem sabe conhecer a área norte da cidade, onde se concentram lazeres populares. Mas e ele, o que pensar de alguém que adora Ella Fitzgerald? Sem dúvida um gentleman da melhor estirpe. Tanto futuro a se desenrolar, tanta coisa a dizer, limitados por um momento tão objetivo. O que esperar do agora? O que fazer? Como não naufragar? O corpo habitava em revés e culpa, desejo e culpa, solidão e culpa, ereção e culpa... Alívio: a secretária me convida a entrar.

Nunca pensei que em um mesmo espaço habitariam gostos tão distintos. Paredes em tons de cinza decoradas com uma boa réplica de As três Marias, de Portinari, mobiliário sóbrio, sofás convidativos e carpete felpudo. 

A moça se retira. O senhor engravatado me convida para sentar e, sem jeito com as palavras, explica que o meu príncipe não havia esclarecido um detalhe, um fato nada importante, mas que causara um desencontro de informações relevantes em nosso juízo. Ele não se interessava por negros, não que tivesse alguma coisa contra, mas não se interessava. A partir daquele instante o agenciador se desculpou comigo e disse que iria repensar a política para a formalização dos encontros, uma maneira mais simples para que os clientes tivessem contato com fotografias uns dos outros e a disponibilidade do cadastro para os interessados não incorrerem no mesmo equívoco.

Levantei-me emudecido, sem palavras, distintamente incompreendido. Interditado de expressar o que o meu coração trazia pelo simples fato de eu, humano, me resumir à cor da pele.

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