Da cabeça aos pés: uma história do corpo na formação das visualidades afrobrasileiras

Antonio Rafael Pinto Bandeira - Cabeça de Homem (1891), óleo sobre tela, 54 x 39 cm. Museu Antônio Parreiras, Niterói

As imagens tanto visuais quanto abstratas são responsáveis por criarem identificações, referenciamentos, padrões de gosto e empatia nas sociedades. Em 1816, Dom João VI, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, fundou a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios no Rio de Janeiro. Em 1826 a Escola passou a ter um prédio próprio e se tornou a Academia Imperial de Belas Artes, cujo objetivo era formar pintores para criarem um conjunto de imagens (iconografia) que definiria a identidade nacional e histórica do Brasil.

Em 1838 foi criado, também, no Rio de Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB). O Império contratou o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen para criar uma história nacional alinhada aos princípios da moral judaico-cristã.

Juntos, a Escola Imperial de Belas Artes e o IHGB desenvolveram um conjunto de textos e imagens que edificaram os princípios da moral cristã e elevaram os valores europeus, formando padrões de gosto ao modelo neoclássico e romântico. Estabeleceu-se então um desejo de edificar o eurocentrismo e elevar a branquitude enquanto ideal de estética e civilidade. Embora o modelo indígena tenha sido tomado no início, não havia a inserção edificante de representações negras, a menos que essas estivessem vinculadas ao mundo do trabalho, malvestidas, acorrentadas, e de pés descalços no chão.

Pessoas negras (pretas e pardas), e indígenas não podiam servir como modelos dos pintores na Academia de Belas Artes. Todavia, poderiam aprender a arte da pintura.

Antonio Rafael Pinto Bandeira (1863 – 1896) foi um dos poucos pintores retintos de que se tem registro a estudar na Academia Imperial de Belas Artes, mas ao contrário do que era determinado na época, ele não apenas representou corpos de pessoas brancas em posições dignificantes ou de conforto. Rafael Pinto Bandeira criou um retrato denominado Cabeça de Homem (1891), cinco anos antes da sua morte. Nesta pintura o artista rompeu com a representação da estereotipia negativa dos negros. Há nela a expressão de um olhar desviado de um jovem homem retinto, melancolia, sensibilidade e languidez. Cabeça de Homem traz uma das primeiras referências de um jovem homem negro em vestes alinhadas, retratado com a dignidade da complexidade de uma personagem que interessa a quem olha.

Cabeça de negro x Cabeça de homem: reparações raciais no Brasil


O pintor niteroiense Antônio Rafael Pinto Bandeira não complementou ou aperfeiçoou sua técnica de pintura na Europa. Ele não recebeu premiação de bolsa em dinheiro capaz de custear uma viagem de meia década para nenhum país europeu, embora ele tenha sido educado em acordo com os cânones europeus, dentro dos salões da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). Segundo evidências documentais apresentadas por José Roberto Teixeira Leite, Pinto Bandeira era um homem tímido, reservado e com limitações emocionais que poderiam ter provocado a sua morte precoce.

É possível intuir que Pinto Bandeira, caso tenha sido um homem reservado, intimidado e solitário, responsabilizado por tirar sua própria vida; esses condicionamentos se davam ao fator racial que o impedia em mobilidade no contexto que se estruturava aos fins do século XIX. E consciente dessas amarras, bem como empobrecido e sensível, o pintor se via descentrado da lógica social que o marginalizava. De acordo com as leituras de Frantz Fanon, entendo que reconhecer-se negro em um universo branco é desolador, pois, no caso de Pinto Bandeira, mesmo que esse possuísse habilidade, sensibilidade e destreza, a cor de sua pele foi um condicionante que o impediu de ascender social e economicamente, mesmo que obtivesse algum respeito em razão de sua dedicação e técnica muito bem apreendida na AIBA.

Novas perspectivas metodológicas: olhares a partir da filosofia dagara


A filosofia dagara se entende por reflexões e inflexões baseadas na cosmovisão da África ocidental a partir do universo Níger-Congo, um sistema crítico de pensamento que problematiza e desestabiliza perspectivas únicas de entender as organizações sociais no globo terrestre. O texto de Sobonfu Somé é o ponto de partida para a observação e interpretação da pintura Cabeça de homem (1891), do pintor brasileiro Antonio Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), cujas pinturas de retratos de personagens negras inauguraram, no país, rupturas com tipos consagrados, destacando-se o grau de humanidade, personalidade e introspecção da sua personagem nessa obra, pertencente ao acervo do Museu Antônio Parreiras, em Niterói.

Moça sentada (1886)


Antonio Rafael Pinto Bandeira nasceu em 1863 na cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Filho de pais escravizados, ele morreu em 1896 aos 33 anos de idade, na cidade do Rio de Janeiro. Pinto Bandeira inovou ao representar personagens com ascendência negra em ambientes ou poses que fogem das ambientações no campo ou na ação laboral. Em Moça sentada (1886), há a imagem de uma mulher mestiça com trajes, pose e adornada de jóias numa ambientação romântica e cheia de languidez; na pintura Feiticeira (1890) há o olhar direcionado ao espectador da imagem, duro e objetivado de uma mulher negra com pose refinada, ela usa pequenos brincos de pérolas, colar no pescoço, coque no cabelo penteado e preso com laço vermelho. O vestido dela é de cor pastel e nos remete ao refinamento de bordados ou babados sutis. Na pintura Jovem adormecida (1891) há a exploração de cores numa ambientação privada, um ambiente íntimo no qual observamos o uso de papel de parede com estampa, mobília de madeira e objetos sofisticados como itens de decoração e luminárias. A jovem vestida com longo vestido azul de listras brancas, repousa com um livro em seu regaço. O sapato traz os pés descansando sobre um tapete vermelho.  

Feiticeira (1890)


A partir da compreensão de que personagens negras não eram usadas como modelos nas aulas de desenho da figura humana desde a implantação da Academia de Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes no Brasil, percebe-se a necessidade de descortinar o mito da falta de representatividade dos corpos negros, tanto nas imagens visuais quanto abstratas, percebendo, por meio da reflexão e inflexão dagara, as possibilidades interpretativas que um retrato a óleo pode nos oferecer.

Jovem adormecida (1891)


Há na pintura reproduzida aqui a expressão do olhar de um jovem homem que não remete à subserviência ou ao medo, nem à dureza a encarar o expectador; ele busca na direção esquerda do quadro aquilo que o expectador não pode ver. A melancolia, languidez e movimento tomam o busto de uma pintura realizada por um pintor negro brasileiro com a dignidade no estudo da composição da complexidade de uma personagem que interessa a quem olha.

Cabeça de homem (1891)

Joana D’arc Araujo da Silva nos auxilia na percepção dos tons pastéis no plano de fundo da imagem, em associação aos tons rosados da bata, entreaberta no peito do homem; esses indícios revelam um brilho e o esplendor da pele negra, além da beleza e imponência do retrato. Concordo com Silva a considerar o engajamento racial de Pinto Bandeira na composição de mais uma pintura do seu acervo, haja vista que, enquanto um homem do seu tempo marcado pelo discurso e o cotidiano estruturado pelos lugares sociais bastante delimitados para homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras, Pinto Bandeira poderia ter se dedicado apenas à reprodução dos modelos que aprendeu ao longo dos seus estudos na AIBA, demonstrando, por exemplo, ter sofrido a introjeção do racismo que acomete comumente aos negros, impedindo-os de perceberem belezas e potencialidades em si e nos seus iguais.

Em 1888, Pinto Bandeira lecionou Desenho no Liceu de Artes e Ofícios de Salvador, mas permaneceu pela Bahia ao longo de dois anos, retornando para o Rio de Janeiro e Niterói, onde tentou várias vezes, sem sucesso, estabelecer um ateliê de pintura.

O artista plástico Rafael Pinto Bandeira é um dos expoentes dessa redescoberta dos corpos para além das cabeças de negros, como foi denominada por longas décadas a sua obra Cabeça de homem (1891). Pinto Bandeira experimentou o processo recente do pós-abolicionismo, ainda que um homem do seu tempo, ele rompeu com o cânone das representações estereotipadas de negros.

Embora empobrecido, foi reconhecido logo cedo como o artista do paisagismo. E levou seus ensinamentos por dois anos no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, onde foi professor de desenho e paisagismo. É considerado um dos mais importantes paisagistas e marinhistas do século XIX. Os retratos do artista são de dimensão intimista, revelando personagens introspectivas. Em Cabeça de homem há a representação da pele retinta de um jovem rapaz. Há o interesse por construir um acervo de caráter nacional adensado, afastando-se dos cânones acadêmicos, há a busca pela liberdade da sua natureza humana.


Para leitura completa do texto, buscar a referência em:

PEREIRA, Túlio Henrique. Da cabeça aos pés: uma história do corpo na formação das visualidades afro-brasileiras. In: GONÇALVES, Cláudia Cristina da Silva Fontineles; SOUSA NETO, Marcelo de; SANTOS, Alessandra Lima dos; PINHO, Allan Ricelli Rodrigues de (orgs.). Tecituras da História. Teresina: EdUESPI, 2021. pp. 31 - 51

Comentários

Unknown disse…
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