Prosa

Sui Generis

Recosta-se exausto na cadeira de madeira com assento acolchoado. Respira fundo ao ponto de extrair uma lágrima dos olhos, mas não permite que caiam. Na tela do computador o alerta do programa de conversação instantâneo lhe chama atenção. Pousa a caneca vermelha sobre o descanso na escrivaninha, cruza as pernas repousando um pé sobre o outro e ri, ainda com melancolia no rosto pálido e lânguido.

Há dúvida para iniciar a conversa. Antes que o impulso leve as mãos a alcançar o mouse, para e olha para o lado esquerdo, olhos pequenos, testa franzida, grenha alvoroçada. Fricciona a parte superior do lábio com a arcada inferior de dentes inexplicavelmente corrigidos, brancos, belos. Coça com a mão os cabelos crespos com alguns pontos de lã. Acabara de levantar da cama deixando-a desarrumada. Ergue a cabeça e avista o teto, inspira fundo de forma lenta e racional. Os olhos procuram no azul da parede algo além da luz cintilando a íris. Estala os dedos das duas mãos, expira intenso e revolve a tela.

As piscadelas do programa cessaram, embora permaneça em destaque. Lembra-se do leite com canela na caneca vermelha. Sorve um gole, dois... Quatro e já está frio há horas, ainda que note o dissabor apenas no quarto gole. Toca o mouse, mas não consegue abrir a janela de conversação. Agora um suspiro. Por quê? Uma forte corrente de ar penetra a vidraça entreaberta revoando as treliças. Oh!? Nada além do vento sorrateiro despenteando a pequena sala azul com armários brancos modulados.

O leite. Ali, dentro da caneca vermelha, choco. A tela acesa na área de trabalho cujo plano de fundo remete ao Saara. E seus olhos. Negros como a aspereza do luto. Perfídia de quem apenas deseja o encontro. O intento lhe toma. Faz-se o feito e ri, mesmo inerte ri, conservando-se pequeno o riso, ri de dentro para fora e se deixa levar:

- Oh moleque como cê tá? – Lê a pergunta com a expressão da dúvida. Perdendo-se atrás de uma resposta.

- Oi, tô bem e você?

Nada nos próximos vinte segundos. Pensa com o indicador na iminência de fechar o programa, até se surpreender com uma nova mensagem:

- Por que faz que não me vê?

- Não faço que não te vejo. Só não quero ser inconveniente.

Súbito. Teme perder o diálogo.

- Pois fez, fiquei te esperando.

Novamente coça a cabeça. Sorri e responde:

- Então, tô aqui.

- Tá muito triste nessa foto.

Assusta-se observando a foto apresentada na janela do programa. Fecha-o e abre novamente para certificar-se de que se trata da mesma foto que vê.

- Qual delas?

- Nessa mesma.

- Da boca? Como dá pra saber, só tem minha boca?

- Mas uma simples boca fechada.

- É, acho que eu sou assim mesmo: uma simples boca fechada.

- Abra, eu tô triste.

Não sabe o que escrever em resposta ao que recebe. Pensa, franze a testa forçando os olhos para enxergar melhor o que lê. Não pode ser! Mas está escrito. Pretende seguir sem prerrogativas:

- Por que você está triste? Quando falo eu falo demais, muitas palavras e gosto... isso incomoda você. Não precisa de minhas bobagens.

- Cê não fala bobagens.

- Mas também não falo, ninguém nunca ouve. Ninguém.

- Ouve quando cê fala?

Paralisa. Como assim “Ouve quando cê fala?”. Espanto de quem duvidasse ser o mesmo com quem mantinha diálogo. Suspira e replica:

- Às vezes sim, mas não preciso me levar a sério, Rafael.

- Me chama de novo de Rafael? Adoro ouvir cê me chamar.

Sorri com amplidão, descendo a ponta do nariz em direção à boca, enrugando as bochechas. A diversão inesperada lhe atrai, mantendo-a no diálogo vazio e desencontrado sem ideia do que acontecerá. Eriça para digitar nervosamente as palavras:

- Rafael, como é se sentir imortalizado?

- Sempre quero ouvir você me chamar!

- Me diga, como se sente sendo imortalizado?

- Eu sou para os que gostam de mim.

- Talvez você nunca tenha oportunidade de ler o que escrevi sobre você.

- Pô! Me sinto muito bem!

- Queria saber como você se sente... você está imortalizado em palavras, num ideal de amor impossível, desencontrado... incompreendido.

- Isso é utopia? Minha vida falha e ouve sempre um grito...

Não acredita no que lê, desfaz o sorriso construindo uma preocupação singela e consternada. Tem dúvida se insiste na pergunta, por isso se resguarda no pensamento e tentativa de análise da última frase. Os dedos nervosos impulsionados tentam algumas palavras, mas as deletam. Não pretende ser inconveniente. Não o quer, precisa que ele esteja entregue e necessitado de sua resposta, contudo, ele não responde. Novamente uma segunda tentativa de forçar a questão, por fim se resguarda e suspira fundo.

Levanta-se e vai até a cozinha num balouçar descompassado de pernas lisas e cumpridas. Os pés descalços deixam o assoalho manchado de suor à medida que segue o próximo passo, no tornozelo uma tornozeleira prata com pingente de crucifixo caindo sobre os pés longos e formes. Retorna com um copo d’água pela metade. Ao se sentar na cadeira a camisa do pijama se levanta na altura do cóccix, em que se vêem algarismos romanos tatuados na pele escura seguidos de palavras em vermelho. Um erre delineado se esconde atrás do tecido que oculta o latim de um verso iniciado em ‘D’ no caminho dos pêlos penetrando as nádegas manchadas com leves estrias. Substitui o descanso e digita anedotas na caixa de diálogo encerrada sem que ele entenda ao menos o porquê.


CADERNO DE ESTUDOS DO DISCURSO E DO CORPO (CEDISCO) - BRASILIDADE, SUBJETIVIDADES E CORPO EM TORNO DA LITERATURA DE TÚLIO HENRIQUE PEREIRA MILANEZ, Nilton (org.)

Marca de Fantasia
Artigos; Contos; Poesia - Periódico (João Pessoa)
2012 - 278 páginas
ISSN: 2316-4697
VOL. 1 N. 1 AGO-DEZ

SUI GENERIS
PEREIRA, Túlio Henrique













Girândola


“Arrenego desta casa, auê
Que tem uma porta só, auê
Como gérê, como gérê, como érá.”
(do folk-lore baiano: O Quibungo e o Homem)

Durante uma tarde clara, alegre, quente e vibrante, sob um céu azul nítido e esvaziado de nuvens, seis crianças brincavam de ciranda numa rua de um pequeno bairro da periferia. Uma região de pobreza avultada, recheada com casebres cobertos com telhado de amianto, cercados com muros de placas pré-moldadas e pequeninas porteiras. Ao longe, sentado sobre uma extensa parte do passeio sobre uma grande área de terra, Inácio brincava sozinho e observava as crianças em alegria incontida. Abandonando-se em uma ação pueril e solitária, o menino revolvia a terra fofa e vermelha que acentuava a cor preta dos seus pequenos e finos braços e pernas.

As cantigas entoadas pelas crianças da ciranda chegavam aos ouvidos de Inácio como o perfume do elixir para tosse, que sua mãe sempre lhe dava na chegada do inverno seco. Aquele elixir tinha o cheiro da desconhecida framboesa que, segundo as palavras de sua mãe, era doce e linda, prima da amora que eles tinham plantada nos fundos do quintal. Inácio adorava o sabor adocicado das amoras enegrecidas de tão maduras, e embora elas fossem docinhas, não lembrava em nada o gosto amargo do elixir. Não entendia o distanciamento de cheiros e os dissabores entre a amora e essa sua prima framboesa. Para ele, ainda que fossem primas, deviam ser iguais em alguma coisa.

Enquanto o rapazote se deixava guiar pelas lembranças e pela imaginação criativa e questionadora, as outras crianças riam e entoavam um cântico atrás do outro, dançavam, balouçavam-se entregues ao revoar do vento, e se abraçavam como se tivessem a consciência da união conspiratória de suas ações e cumplicidade.

Acesos em suas alegrias de infância, cantavam em alto tom: “Eu sou pobre, pobre, pobre de marré-marré-marré/ Eu sou pobre, pobre, pobre de marré-deci/Eu sou rica, rica, rica, de marré-marré-marré/ Eu sou rica, rica, rica, de marré-deci/Quero uma de vossas filhas, de marré-marré-marré/Quero uma de vossas filhas, de marré-deci/ Escolhei a qual quiser, de marré-marré-marré/ Escolhei a qual quiser, de marré-deci/ Eu só quero a Maria.../ Eu de pobre fiquei rica, de marré-marré-marré/Eu de pobre fiquei rica, de marré-deci”. Tão logo ao encerrar uma ciranda repetida à exaustão, emendavam outra e se mantinham intocáveis em suas nuances: “Samba-lê-lê está doente/ Está com a cabeça quebrada/ Samba-lê-lê precisava/ É de uma boa lambada/ Samba, samba, samba o lê lê/ Samba na barra da saia o lá lá/ Olhe morena bonita/ Como é que se namora?/ Põe-se um lencinho no bolso/ Com as pontinhas de fora/ Samba, samba, samba...”.

Desinteressado, o espírito de Inácio direcionou seus olhos às crianças que de tão excitadas não cessavam a brincadeira. Colheu com as mãos um punhado da terra vermelha, e ao sentir que o vento soprava contra o seu corpinho, indo em direção àquele grupo, aproximou-se e ergueu as mãos para o alto, espalhando a terra ao vento.

O insensato estava feito, Inácio lhes sujou as roupinhas e lhes empoeirou os olhos. Mesmo tendo sido necessário cessar a brincadeira por alguns instantes, em decorrência do susto e da sujeira que foi preciso ser abanada dos olhos, das roupas e dos cabelos, como num passe de mágica e em perfeita sincronia, os meninos se deram as mãos novamente e retomaram os cantos.

Para aflição e descontentamento de Inácio, pouca atenção lhe foi dada; também não o reprimiram com violência física. Munidos das suas criativas canções, o puniram severamente ao entoar uma ciranda maldosa: “Nêgo preto, macumbeiro, do sovaco fedorento, rala a bunda no cimento pra ganhar mil e quinhentos”. Repetiam por diversas vezes aquela cantiga, enfatizando em alto tom as palavras que pudessem referenciar na música as características fenotípicas do pequeno.

Inácio parecia não responder aos sentidos, embora tivesse a consciência de que a sua cor era preta e que se distanciava dos matizes mais claros das peles daquelas crianças. Eles não lhe significavam muito senão a alegria da qual ele não podia compartilhar unido. Eles nunca aceitariam sua companhia, mas ele, embora mais jovem que aquelas crianças, os observava diariamente na esperança do convite para o encontro.

Após olhá-los sem a recíproca do olhar, o menino seguiu o caminho dos trilhos em direção a sua casa, que não se encontrava no bairro daqueles meninos, onde as casas e os muros eram construídos de pré-moldados. Ele morava um pouco mais adiante, abaixo, distante, no Vale dos Buritis, que se encontrava depois do trieiro estreito por onde seus pezinhos descalços pisoteavam pedras e pequenos espinhos.

O caminho tortuoso que levava até a pequena casinha de taipa o desconectava da sensação da indiferença, e o transpunha aos mistérios mais miméticos dos cogumelos que encontrava pelo caminho. Não sabia ao certo se era verdade que os sapos ali viviam, pois não podia imaginar como um cururu se esconderia por debaixo de uma casinha tão pequena. Inácio assoviava ao tempo e pulava em saltos como uma criança da Vila. Até entoava as canções aprendidas na observância daqueles que não o queriam; mas quando se lembrava da musiquinha maldosa, ao embalar a primeira nota, se colocava alerta para impedir que aquelas palavras se materializassem através das nervuras de sua língua. Ele as cuspia boca afora. As cuspia para o alto, tentando acertar os pombos que sobrevoavam sua cabeça em busca de abrigo.

Aos finais de tarde, o sol se escondia por detrás do firmamento da serra, expondo um espetáculo policromático na amplidão do céu. Atento, Inácio desacelerou o passo e arregalou os olhos negros e chamejados. Viu que se decidisse caminhar até lá a consciência poderia se perder antes da chegada, sentiu a sutileza da grandeza do mundo o cerceando. Havia de ter gente sorrindo no céu – pensou - como a sua vovó Ilda e a tia Zuleide, que “de onde estivessem, havia de olhar por nós”, conforme as palavras de sua mamãe.

A visão do firmamento se desmaterializava de forma lenta, na medida em que o menino recordava de suas afeições e memórias da família. O entrecruzar da ficção e da realidade o mantinha imóvel e vislumbrado, era como se houvesse devorado toda a energia do mundo com os seus pequenos pulmões e com o coração em constante pulsação.

Por um instante um lapso se desfez e ele recordou que deveria voltar para casa com os três ovos e cortes de salame para o jantar. Redobrou a consciência e deu meia volta em direção ao bairro das crianças, quando, em um passo inusitado, foi surpreendido pelo choque de uma pedra contra sua cabeça.

Inácio esmoreceu.

A vista se perdeu em ligeira turgidez. As perninhas se desequilibraram, deixando desmoronar o corpinho magro por cima das gramíneas. As imagens se mesclavam entre o alaranjado céu da despedida do sol, os pássaros, a ciranda, o solo, os pombos e os cogumelos. E ao longe, ainda se podiam ouvir ruídos misturados aos berros de ódio e da justiça dos homens. Podia ouvi-los gritar sua vingança em nome dos pequeninos na liberdade da rua. A partir dos ecos, entendia-se o porquê de o chamarem veementemente por “Macaco! Macaco! Macaco!”.

Lembrou também de ouvir as canções de roda que aprendera nas outras vezes em que se demorou por lá a espiá-los, quando na verdade deveria ter seguido os conselhos de sua mãe. Sentiu-se culpado pelo que fizera, mas não se arrependeu. Sentiu-se punido pela razão daqueles homens. Sentiu-se...


ANTOLOGIA AMANTE DAS LEITURAS
COSTA, Ana Maria; FERNANDES, Julio (orgs.)

Temas Originais Poesia; Contos - Literatura Portuguesa
2012 - 98 páginas
ISBN: 978-989-688-126-9

GIRÂNDOLA
PEREIRA, Túlio Henrique












À Flor da Pele


Depois de seis semanas impetuosas em busca de mais uma razão do meu viver, eu finalmente estava ali, admirando uma reprodução pobre e desbotada de Little spooners sunset, de Norman Rockwell, em uma parede cor abóbora. Sem dúvida um crime de péssimo gosto. Estava no meu terceiro cafezinho, já tinha emaranhado e desemaranhado as felpas da grenha, andado de um lado para o outro, observado os rastros marcando o assoalho de lajota encerado e até sorrido com Hilst. A Hilda.

Não me continha em minha ansiedade. Se não fosse pelo estímulo de Érica, uma gordinha ruiva, balzaquiana incrível sob sua pele feminina e única melhor amiga, jamais teria preenchido o meu cadastro naquela agência fechativa: preço baixo, sigilo, ambiente requintado e segurança. Sem dúvida reconfortaria o meu desespero de solidão com mais um gatuno ou a tentativa frustrada de outra viagem ao Havaí. Eu sabia do que queria, como e porque me mantinha naquele lugar. Tudo era muito claro, bem como quando conquistei a estabilidade profissional almejada, o respeito e a educação planejados e o consentimento familiar postergado por tantos desencontros. Estava pronto, lúcido e receptível a toda e qualquer possibilidade de colisão. Cansado de ser o só.

Pelas tantas, durante a espera, uma fresta de luz invadiu o espaço da sala, roubando atenção e sensivelmente aguçando a curiosidade. Atravessava o vidro e as persianas horizontais, tocando a folhagem de um arbusto suntuoso esgueirado no canto direito do cômodo, entre o sofá e a janela.

A moça da recepção era hábil. Novidade. Ao mesmo tempo em que conversava no programa de mensagens instantâneas, atendia ao telefone e os clientes, acomodados por ela em outras salas, e prestava bastante atenção na minha perna inquieta ou em minhas mãos agitadas. Estava ávido por aquele porvir, muito mais do que quando aguardava o resultado da solicitação de financiamento do meu primeiro veículo, há doze anos.

Não havia parâmetros para o instante. Nenhuma referência de anos de leitura da Marie Claire, sequer um conselho bonachão da Érica, esperançosa para que eu encontrasse aquilo que denominava felicidade. Nem mamãe se fazia presente com suas advertências e crendices comuns. Eu estava só, mais uma vez, porém, à espera do fim, contemplando a iminência de uma solidão obsoleta e tardia. Não podia me portar habilidoso, nunca o fizera antes. Não conheci ninguém que tivesse passado pela mesma situação. Foram anos dedicados aos estudos, outros tantos à carreira e muito mais constituindo aquilo que todos disseram se tratar de equilíbrio. Nenhum deles experienciado por um toque ou beijo, singelo que fosse.

Como mamãe costumava dizer, para ela, eu era donzelo e não gay. Não deveria aceitar o que tantos diziam ao ouvido para que eu seguisse. Zelosa mamãe, mal sabia o deleite arraigado de sítios virtuais em noites brandas trancado em meu quarto.

Enfim, já havia se passado muitos minutos, além do combinado. Não me aguentava em ansiedade. Sentia-me a princesa a ser arrebatada por seu príncipe em um cavalo branco rasgando a mata ao meu encontro. Vicissitude sublime saltitando o coração ao mesmo passo, dada a calmaria. Não sabia o que sentir, nem ao menos o que pensar. Embora ele pudesse estranhar o meu sorriso solto e a minha temporária timidez, não haveria motivos para não se encantar por mim. Poderíamos passear pela estrada do lago, depois ir ao teatro e quem sabe conhecer a área norte da cidade, onde se concentram lazeres populares. Mas e ele, o que pensar de alguém que adora Ella Fitzgerald? Sem dúvida um gentleman da melhor estirpe. Tanto futuro a se desenrolar, tanta coisa a dizer, limitados por um momento tão objetivo. O que esperar do agora? O que fazer? Como não naufragar? O corpo habitava em revés e culpa, desejo e culpa, solidão e culpa, ereção e culpa... Alívio: a secretária me convida a entrar.

Nunca pensei que em um mesmo espaço habitariam gostos tão distintos. Paredes em tons de cinza decoradas com uma boa réplica de As três Marias, de Portinari, mobiliário sóbrio, sofás convidativos e carpete felpudo.

A moça se retira. O senhor engravatado me convida para sentar e, sem jeito com as palavras, explica que o meu príncipe não havia esclarecido um detalhe, um fato nada importante, mas que causara um desencontro de informações relevantes em nosso juízo. Ele não se interessava por negros, não que tivesse alguma coisa contra, mas não se interessava. A partir daquele instante o agenciador se desculpou comigo e disse que iria repensar a política para a formalização dos encontros, uma maneira mais simples para que os clientes tivessem contato com fotografias uns dos outros e a disponibilidade do cadastro para os interessados não incorrerem no mesmo equívoco.

Levantei-me emudecido, sem palavras, distintamente incompreendido. Interditado de expressar o que o meu coração trazia pelo simples fato de eu, humano, me resumir à cor da pele.


ANTOLOGIA AMANTE DAS LEITURAS
COSTA, Ana Maria; FERNANDES, Julio (orgs.)

Temas Originais
Poesia; Contos - Literatura Portuguesa
2010 - 90 páginas 

À FLOR DA PELE
PEREIRA, Túlio Henrique









 







O Outro Lado da Via

“Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere”
(Orides Fontela)

Há cansaço no seu rosto pequeno meio arredondado. Suor desce em correnteza, irritando os olhos coçados com os dedos, ele tem pressa de se esconder do sol, mas caminha sob ele para não perder mais tempo descansando sob árvores. Na mente a voz da mãe gritando a vontade à sua semelhança, realizar os sonhos que ela tinha para ele sem nenhum resquício de dúvida: “meu filho vai crescer sadio e forte, vai se casar com uma moça da cidade e cuidará de nossa família até a morte. Caso a sorte em Deus não falhe, terá uma farmácia e o conforto chegará, do suor, da dignidade do homem que trabalha”. Mas as palavras lhe empacavam os passos, então canções serviam para acelerá-lo em alcanço da cidade, seu destino nesta hora, onde o menino dos cabelos cacheados habita ocultado de seus olhos resignados da sensação de tê-lo.

Já é tarde e o crepúsculo do verão faz o dia fenecer num espetáculo sem espectadores, com escassez de aplausos e, sobretudo, acuidade. As tardes nunca pareciam iguais ao seu olhar, porque ele a sentia dentro do peito como se sentisse uma saudade abrindo sem dó uma cratera negra sem fim. O que fazer agora era o que ele pensava sozinho, enrolando os dedos nos montinhos crespos do cabelo curto. Puxou o pai na fisionomia do rosto, um negro belo como diziam pela cidade, que deixava as moças todas penduradas pelas janelas, hipnotizadas pelos braços torneados do crioulo de lábio rosado e carnudo, olhos delineados e maçãs da face fortes como o peitoral. Porém só havia visto o pai algumas vezes, poucas vezes, contudo suficientes para comprovar os falatórios, portanto não sentia amor por ele, nem a ausência, apesar da crença de que a ausência seja sentida apenas depois da experimentação do convívio. Entretanto não sabia ao certo o que pensar a respeito do afeto, não do modo de ser pai e filho, bem como homem e homem, mas sentia medo de pensar se o pai presente lhe despertaria sentimentos corrosivos no peito, como o garotinho dos cachos negros e olhos vivos que lhe sorri, ao vê-lo entrando na cidade em suas havaianas verde e jeans rasgado.

O menino sabia encantar com seu sorriso torto, seus olhos curvilíneos, escondendo a íris carregada de brilho e redenção. O coração acelerado como uma bomba prestes a explodir e perfurar o peito frágil, expondo os ossinhos da costela. Nunca quando não estava em apresentação na escola a boca secava tanto, melhor seria fazer três provas orais de inglês e conjugar o verbo to be cara a cara com a jovem professora americanizada.

Todos os pensamentos sempre foram inevitáveis no momento desse encontro, nunca descobrira saída que amenizasse o estado embriagado que se faz estafa:

- Que foi? - Os cachinhos pretos balançam, só isso importa, mais nada. Alguns fios irregulares tapam os olhinhos do rapazote sorridente e conversador, empurrando a bicicleta pelo guidom com as duas mãos, enquanto os olhinhos puxados sedentos do observar se contemplam no silêncio interpessoal – Que foi, Diogo? Tá parecendo bobo.

- Não é nada não!

- Sua mãe te bateu?

- Não.

- Então por que tá assim?

- Por quê? ...sei lá.

Um caminho longo por uma via dupla larga e conflituosa. Carroceiros com chapéus de palha, crianças correndo em meio aos calhambeques e zero quilômetros na direção do poente, enquanto dois garotos dividem espaço entre a tradição do corpo e a modernidade do concreto pela alameda e toda a sua extensão, reluzindo em asfalto preto. A fumaça dos ônibus velhos em circulação esconde o verde das folhas de uma videira estendida em praça pública, na calçada larga um bulevar falseado de pequenas flores amarelas, construídas pela prefeitura em um concurso de artes para o bem do meio ambiente, estimulado nas escolas. Cada qual em seu lugar esperando o momento certo de ser, onde querem que o seja, apesar da caminhada deslocá-los para outros espaços físicos e o pensamento de Diogo introvertido no seu estômago.

Tropeça em latas, papeis e pedras jogados pela rua, porque viaja em si enquanto os olhos se encantam à mensagem construída:

- Que foi?

- Nada.

- Pode ser nada, mas que tá esquisito hoje, cê tá!

O mundo é construído de palavras que não são faladas, gestos não interpretados e sentimentos gerados no ventre da humanidade, enquanto o sol se põe em seu espetáculo diário despido de qualquer glamour pirotécnico. Apenas crepúsculo constituído pelo firmamento, o ar e o espaço, pois mal sabem eles que o ocaso do momento tem durabilidade inferior a uma hora e vinte e cinco minutos em um dia de domingo quente perdido no mês de dezembro, quando suas auroras se perdem lentas por cada marcha correspondida a períodos variáveis da luminosidade decrescente de suas virtudes, agora responsabilidades, forçando traço no horizonte, dia após dia; sempre ao ocaso do sol quando já não mais percebe-se os efeitos dos raios nem os contratempos da atmosfera.

Ambos se partem, seguem em busca de si, embora perdidos nestes intervalos do tempo seriado, influídos em difusão e luz, camada por camada até o instante do desaparecimento dos seus astros amamentados pela fortificação e direcionados ao saber, crescentes.

Potentados em sua mocidade ambos esbravejam, assoviam e chutam um ao outro em consideração à amizade fluente que os mantêm pela alameda interminável, sem a direção do tempo, que na cidade, está parado desde os dias em que o leite era comercializado em potes de vidro. Agora, talvez uma nova era se faça com permanências e a novidade na face da salgadeira Doricélia, gritando alto a promoção das esfihas recheadas com creme de queijo e milho. Os meninos se perdem apenas na vontade e continuam a caminhada.

***

Entre tantas auroras e depois de tantas se constrói homens, derruba-se casas enquanto outras se erguem, mas o vento continua em uivos e sopros anunciando a face de cada dia que não se perde e nada se encontra. Depois de anos o silêncio ainda os contempla, embora diferenças maiores se alojem nas distâncias que os ordenam:

- Cê tem medo da morte, Diogo?

- Da morte não, da vida.

- Não entendo.

- Nem é pra entender.

- Sei. Agora cê é filósofo.

- E quem não é?

- Quem!?

Uma pedra sobre as águas da bacia do rio dos bois no meio das folhas e do cheiro de estrume. Agora contemplam identidades singulares dos diferentes dias que lhes trouxeram descontração e emoções afáveis. Não se olham, mas observam a imensidão do rio, escoando lentamente aos seus olhos que não vêem a velocidade que o seu fluxo esconde submersa a lâmina difusa pelo ar, ao separá-los.

Diogo tem certeza do que quer falar, entretanto a boca não exprime seus sentidos, muito menos o corpo deitado sobre a pedra com os olhos mirados para o céu debaixo das árvores, vendo os poucos raios solares, penetrando entre os galhos. Já não existem cachos pretos nem mesmo os cabelos crespos do Diogo em moinhos, as lâminas controlam com praticidade seu encorajamento a sociedade dos sonhos, onde suas palavras ganham vida e sua voz é ouvida por mais de uma centena de pessoas, sem que diga sequer uma palavra:

- Lá é bom?

- Hã?

- Faculdade. Gente, cidade grande. É igual na televisão?

Diogo percorre o caminho do vento, passeia a visão nas unhas encravadas dos pés do moçoilo e vê que os pêlos nas pernas são quase crinas. Os cachos dele já não existem mais, mas os pêlos escorrem lustrosos sobre a sua perna torneada e escura. Seriam claras se morasse na cidade, sem tomar sol, sem ordenhar. A ausência dos cachos o incomoda, embora reconstrua na mente os momentos perdidos nos passeios de bicicleta e beliscões.

Não resiste. Belisca.

- Por que fez isso?

- Não sei, impulso.

Agora ele não tinha palavras. Diogo era um amigo estranho e um beliscão depois de anos ausentes não era concebível. Talvez por serem homens, agora ou simplesmente, por não haver motivo. Não reconhecia Diogo, mas o conhecia o suficiente para reparar em sua pele negra com brilho, olhos repuxados e uma imensa boca, ostentando o mais belo sorriso de descontentamento. Não entendia as mudanças, ou apenas a falta de atenção despendida ao amigo noutros tempos, agora não era o pequenino Diogo, era um Diogo cheio de palavras bonitas, apesar do mesmo paraíso de silêncio. O moçoilo arrebatou a integridade emocional do amigo com seu olhar fixado, atravessando o corpinho esguio adequado com exatidão na malha branca e o jeans escuro. Em lugar das havaianas um Adidas leve como pluma.

- Que foi?

Diogo não pensa. Não pode! Sequer uma palavra sai de si, mas sente vontade de demonstrar toda a riqueza que o seu peito guardara durante a evaporação dos dias. Então lhe foi à boca, premissa mais conivente estendida pelo amigo, selando o que o homem não nega no princípio de sua vida, mesmo subjugado pelos parâmetros. Depois de retraída a face com o disfarce de um cochicho desnecessário no ambiente, devagarzinho se afasta, cabisbaixo. Olhar perdido no horizonte de água e céu. Retira do bolso um envelope, estendendo-o ao amigo. Aterrissa de sua nuance.

- Que é?

- Você não muda. Leia!

Hesitante ele toma para si o que lhe é dado.

- Sabia que o crepúsculo vespertino corresponde ao período de variação de luminosidade decrescente no horizonte do ocaso, logo após o ocaso do Sol, até o instante em que não são mais percebidos os efeitos dos raios solares na atmosfera? – Olha do lado e não mais vê o amigo. Assusta-se ao se levantar erguendo o pescoço para tentar avistá-lo indo embora, mas o encontra distante se despindo sobre o píer. Sente-se aliviado e avista do outro lado as páginas sendo levadas pela correnteza do rio. Talvez ao encontro do passado e do futuro que lhes reservam águas tão brutas e contempláveis.

ANTOLOGIA POÉTICA AMANTE DAS LEITURAS
COSTA, Ana Maria; FERNANDES, Julio (orgs.)
ADL Editores
Poesia; Contos - Literatura Portuguesa
2009 - 182 páginas 

O OUTRO LADO DA VIA
PEREIRA, Túlio Henrique





















Via Crucis

Do alto do segundo andar de um prédio classe média avista um rato morto no telhado da garagem visto de cima. Pela janela lateral, o prédio largo de quatro andares e seis janelas, começa a se esconder atrás da nova construção de um outro edifício. Do lado esquerdo, outro em construção, mais imponente, estreito e vertical. Homens trabalhando durante todo o dia, e o corpo do rato estirado na curva da telha de fibra ondulada.

Os carros vão e vem freneticamente, alguns faróis se acendem em plena tarde, velhos correm ao atravessar a rua sobre a faixa de pedestre, enquanto crianças dão risadas na esquina em seus uniformes sujos na saída da escola. Alguns pais carregam as mochilas de seus filhos e nem os notam, apanhando as folhas do arbusto esverdeado.

A cidade conserva casas de arquitetura antiga e muitos penteados também. Uma jabuticabeira se espreguiça do fundo de um quintal qualquer e as motocicletas apressadas buzinam para que o pedestre se apresse. Todos os telhados guardam sujeira, todos os ônibus aguardam por um sinal.

Seu Virgílio, do alto do segundo andar, suspira e tem a sensação de que tudo ultimamente vem perdendo o sentido. Não sabe se é nostalgia de sua mocidade, se o cansaço não lhe permite felicidade, mas as coisas não contemplam o mesmo sentido. Não mesmo.

A cidade vai se perdendo de vista no horizonte, quanto concreto o separa de sua juventude, ou quanta juventude se separa de sua mocidade? Ele já não é apenas um senhor de meia idade. Não pode sair à rua para caminhar sozinho. Luzes se acendem, uma a uma, de modo gradativo e quase imperceptível, tal como os fios brancos agredindo os raros louros no couro cabeludo e aquela sensação de vitalidade mortal.

Um dia quando ele beijou a primeira namorada no carona do amigo Ronildo, não conseguiu entender que Lena chorava por um sentimento maior que aquele momento. Não poderia pensar em outra coisa, senão no desejo de que tudo terminasse do modo comum para qualquer homem viril em sua idade. Sentimentos díspares em idades iguais. O momento para ele prova de sua moral, para ela transcendia o corpo. E Lena consentiu aquilo por três finais de semana até sua partida em um ônibus sem cor e devotamento. O céu parece o mesmo, no lugar do passado, como resquícios de vento penetrando os orifícios da vidraça.

Tudo possui nome, mas não possui face, são flashes em representação de algo que nunca aconteceu: a vida. O que seria agora, se não fosse o que viveu?

Virgílio sofre de gota e diabete. Os músculos murcharam sem que percebesse, o abdômen liso derramou-se e o ânus toma mais o seu tempo, que um dia lhe tomara o pênis.

ANTOLOGIA POÉTICA AMANTE DAS LEITURAS
COSTA, Ana Maria (Org.)
Edium Editores

Poesia; Contos - Literatura Estrangeira (Portugal)

2008 - 198 páginas ISBN:

VIA CRUCIS
PEREIRA, Túlio Henrique












ANTOLOGIA POÉTICA E CONTOS
FERREIRA, Adriana dos Reis; SANTOS, Hugo José; SILVA, Lorenna Fernandes; MENDONÇA, Sheila Rose Barros da Silva (orgs.)
Kelps Editora/Banco do Brasil/Sesi
2005 - 210 páginas
ISBN: 86.110

MUNDO AZUL COR DE FEL
PEREIRA, Túlio Henrique
p. 133-144