Girândola

“Arrenego desta casa, auê
Que tem uma porta só, auê
Como gérê, como gérê, como érá.”
(do folk-lore baiano: O Quibungo e o Homem)

Durante uma tarde clara, alegre, quente e vibrante, sob um céu azul nítido e esvaziado de nuvens, seis crianças brincavam de ciranda numa rua de um pequeno bairro da periferia. Uma região de pobreza avultada, recheada com casebres cobertos com telhado de amianto, cercados com muros de placas pré-moldadas e pequeninas porteiras. Ao longe, sentado sobre uma extensa parte do passeio sobre uma grande área de terra, Inácio brincava sozinho e observava as crianças em alegria incontida. Abandonando-se em uma ação pueril e solitária, o menino revolvia a terra fofa e vermelha que acentuava a cor preta dos seus pequenos e finos braços e pernas.

As cantigas entoadas pelas crianças da ciranda chegavam aos ouvidos de Inácio como o perfume do elixir para tosse, que sua mãe sempre lhe dava na chegada do inverno seco. Aquele elixir tinha o cheiro da desconhecida framboesa que, segundo as palavras de sua mãe, era doce e linda, prima da amora que eles tinham plantada nos fundos do quintal. Inácio adorava o sabor adocicado das amoras enegrecidas de tão maduras, e embora elas fossem docinhas, não lembrava em nada o gosto amargo do elixir. Não entendia o distanciamento de cheiros e os dissabores entre a amora e essa sua prima framboesa. Para ele, ainda que fossem primas, deviam ser iguais em alguma coisa.

Enquanto o rapazote se deixava guiar pelas lembranças e pela imaginação criativa e questionadora, as outras crianças riam e entoavam um cântico atrás do outro, dançavam, balouçavam-se entregues ao revoar do vento, e se abraçavam como se tivessem a consciência da união conspiratória de suas ações e cumplicidade.

Acesos em suas alegrias de infância, cantavam em alto tom: “Eu sou pobre, pobre, pobre de marré-marré-marré/ Eu sou pobre, pobre, pobre de marré-deci/Eu sou rica, rica, rica, de marré-marré-marré/ Eu sou rica, rica, rica, de marré-deci/Quero uma de vossas filhas, de marré-marré-marré/Quero uma de vossas filhas, de marré-deci/ Escolhei a qual quiser, de marré-marré-marré/ Escolhei a qual quiser, de marré-deci/ Eu só quero a Maria.../ Eu de pobre fiquei rica, de marré-marré-marré/Eu de pobre fiquei rica, de marré-deci”. Tão logo ao encerrar uma ciranda repetida à exaustão, emendavam outra e se mantinham intocáveis em suas nuances: “Samba-lê-lê está doente/ Está com a cabeça quebrada/ Samba-lê-lê precisava/ É de uma boa lambada/ Samba, samba, samba o lê lê/ Samba na barra da saia o lá lá/ Olhe morena bonita/ Como é que se namora?/ Põe-se um lencinho no bolso/ Com as pontinhas de fora/ Samba, samba, samba...”.

Desinteressado, o espírito de Inácio direcionou seus olhos às crianças que de tão excitadas não cessavam a brincadeira. Colheu com as mãos um punhado da terra vermelha, e ao sentir que o vento soprava contra o seu corpinho, indo em direção àquele grupo, aproximou-se e ergueu as mãos para o alto, espalhando a terra ao vento. 

O insensato estava feito, Inácio lhes sujou as roupinhas e lhes empoeirou os olhos. Mesmo tendo sido necessário cessar a brincadeira por alguns instantes, em decorrência do susto e da sujeira que foi preciso ser abanada dos olhos, das roupas e dos cabelos, como num passe de mágica e em perfeita sincronia, os meninos se deram as mãos novamente e retomaram os cantos.

Para aflição e descontentamento de Inácio, pouca atenção lhe foi dada; também não o reprimiram com violência física. Munidos das suas criativas canções, o puniram severamente ao entoar uma ciranda maldosa: “Nêgo preto, macumbeiro, do sovaco fedorento, rala a bunda no cimento pra ganhar mil e quinhentos”. Repetiam por diversas vezes aquela cantiga, enfatizando em alto tom as palavras que pudessem referenciar na música as características fenotípicas do pequeno.

Inácio parecia não responder aos sentidos, embora tivesse a consciência de que a sua cor era preta e que se distanciava dos matizes mais claros das peles daquelas crianças. Eles não lhe significavam muito senão a alegria da qual ele não podia compartilhar unido. Eles nunca aceitariam sua companhia, mas ele, embora mais jovem que aquelas crianças, os observava diariamente na esperança do convite para o encontro.

Após olhá-los sem a recíproca do olhar, o menino seguiu o caminho dos trilhos em direção a sua casa, que não se encontrava no bairro daqueles meninos, onde as casas e os muros eram construídos de pré-moldados. Ele morava um pouco mais adiante, abaixo, distante, no Vale dos Buritis, que se encontrava depois do trieiro estreito por onde seus pezinhos descalços pisoteavam pedras e pequenos espinhos. 

O caminho tortuoso que levava até a pequena casinha de taipa o desconectava da sensação da indiferença, e o transpunha aos mistérios mais miméticos dos cogumelos que encontrava pelo caminho. Não sabia ao certo se era verdade que os sapos ali viviam, pois não podia imaginar como um cururu se esconderia por debaixo de uma casinha tão pequena. Inácio assoviava ao tempo e pulava em saltos como uma criança da Vila. Até entoava as canções aprendidas na observância daqueles que não o queriam; mas quando se lembrava da musiquinha maldosa, ao embalar a primeira nota, se colocava alerta para impedir que aquelas palavras se materializassem através das nervuras de sua língua. Ele as cuspia boca afora. As cuspia para o alto, tentando acertar os pombos que sobrevoavam sua cabeça em busca de abrigo.

Aos finais de tarde, o sol se escondia por detrás do firmamento da serra, expondo um espetáculo policromático na amplidão do céu. Atento, Inácio desacelerou o passo e arregalou os olhos negros e chamejados. Viu que se decidisse caminhar até lá a consciência poderia se perder antes da chegada, sentiu a sutileza da grandeza do mundo o cerceando. Havia de ter gente sorrindo no céu – pensou - como a sua vovó Ilda e a tia Zuleide, que “de onde estivessem, havia de olhar por nós”, conforme as palavras de sua mamãe. 

A visão do firmamento se desmaterializava de forma lenta, na medida em que o menino recordava de suas afeições e memórias da família. O entrecruzar da ficção e da realidade o mantinha imóvel e vislumbrado, era como se houvesse devorado toda a energia do mundo com os seus pequenos pulmões e com o coração em constante pulsação.

Por um instante um lapso se desfez e ele recordou que deveria voltar para casa com os três ovos e cortes de salame para o jantar. Redobrou a consciência e deu meia volta em direção ao bairro das crianças, quando, em um passo inusitado, foi surpreendido pelo choque de uma pedra contra sua cabeça. 

Inácio esmoreceu. 

A vista se perdeu em ligeira turgidez. As perninhas se desequilibraram, deixando desmoronar o corpinho magro por cima das gramíneas. As imagens se mesclavam entre o alaranjado céu da despedida do sol, os pássaros, a ciranda, o solo, os pombos e os cogumelos. E ao longe, ainda se podiam ouvir ruídos misturados aos berros de ódio e da justiça dos homens. Podia ouvi-los gritar sua vingança em nome dos pequeninos na liberdade da rua. A partir dos ecos, entendia-se o porquê de o chamarem veementemente por “Macaco! Macaco! Macaco!”. 

Lembrou também de ouvir as canções de roda que aprendera nas outras vezes em que se demorou por lá a espiá-los, quando na verdade deveria ter seguido os conselhos de sua mãe. Sentiu-se culpado pelo que fizera, mas não se arrependeu. Sentiu-se punido pela razão daqueles homens. Sentiu-se...

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