Da cabeça aos pés: pretas e o protagonismo na história do trabalho

Lucílio de Albuquerque, Doceira baiana, c. 1925, óleo sobre tela, 73 cm x 92 cm

A pintura Doceira baiana (c. 1925) não possui uma datação correta, muitos críticos e analistas tomam essa pintura como sendo produzida depois da experiência de Lucílio na cidade de Salvador, Bahia, em 1924. São poucas as representações do corpo negro retratadas por Lucílio, diferentemente de Pinto Bandeira que se dedicou mais à recriação desses corpos marginalizados pela iconografia nacional desde o advento da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) no período do Império no Brasil.

Caroline Fernandes ao analisar as representações visuais de vendedoras na pintura nacional, toma Doceira baiana como última obra de seu artigo. Noto que, em meio a paisagem urbana recortada, onde estão dispostas duas vendedoras, uma delas em primeiro plano, sentada no degrau que a impulsiona para cima, coluna ereta, atenta em seu trabalho de vender doces, seus contornos são manchados de modo que a fenotipia do desenho da boca e nariz não fiquem nítidos. A outra personagem se espreita no plano de fundo atrás da vendedora de doces em atividade, está recostada na parede, parece contrita, em perfil, de pernas flexionadas ela se afunda em seu próprio corpo. Ambas vestem muitos panos, longas saias, sendo a primeira na cor vermelha e a segunda na cor rosa, turbantes e blusas nas cores brancas com renda e manto.

Jean-Baptiste Debret, Negra tatuada vendendo cajus, aquarela, 1835

A representação da negra de ganho com seu tabuleiro e a sua gamela, apesar de estar localizada na década de 1925 nos faz remeter à memória das escravas e das mulheres africanas e crioulas que viviam do ganho nas ruas do Salvador de parte da Colônia ao Império do Brasil. De acordo com o historiador estadunidense radicado no Brasil, Richard Graham, entre 1780 e 1860, as ruas da capital baiana eram abarrotadas de ganhadoras autônomas ou escravas em exercício para seus senhores. Muitas escravas conseguiam comprar suas alforrias com o dinheiro do ganho enquanto outras até alcançavam algum privilégio econômico com direito a propriedade territorial e escravos próprios, como no exemplo que Graham nos oferece da ex-escrava Ana de São José da Trindade, que segundo investigação do autor nos papeis do testamento deixado por ela, esta possuía terreno sem dívidas ou pendências, uma casa construída de pedras, cal e paredes com gesso e janelas de vidro. No testamento de Ana de São José da Trindade também consta, segundo o autor, que esta era proprietária de nove pessoas escravizadas.

Armando Martins Vianna, Limpando metais, 1923, óleo sobre tela, 99 cm x 81 cm, Juiz de Fora, Museu Mariano Procópio 

De acordo com Cecilia Moreira Soares, ainda sobre o período imperial, havia grande diferença entre as negras de ganho livres e aquelas que eram escravas, pois as últimas dependiam do julgo e das vontades de seus senhores, enquanto as libertas negociavam seus próprios produtos disponibilizando variedade de itens para à venda, e trabalhavam de acordo com suas conveniências para o sustento dos seus filhos e suas casas. A origem das ganhadoras também foi item levantado por Cecilia Soares, oferecendo a possibilidade de conhecer a multiplicidade das etnias transplantadas, a organização e hierarquização dessas etnias, a matização da cor de suas peles e a valorização dessas enquanto mão de obra destinada ao ganho financeiro.

Conhecemos a história do Brasil por documentos produzidos pelas diversas instituições do estado nacional, e dentre elas as pinturas, desenhos, gravuras e xilogravuras produzidas por artistas plásticos brasileiros ou estrangeiros. É evidente que a maior parte dessas imagens a registrar testemunhos do território nacional, incluindo a iconografia do corpo negro e indígena, no Brasil, foram criadas por europeus em missão pelo território. Foi Jean-Bapstiste Debret, Frans Janszoon Post, Albert Eckhout, Johann Moritz Rugendas, e tantos outros, os responsáveis por construir um imaginário visual desses corpos negros. Esse imaginário persiste na mentalidade atual de brasileiras e brasileiros.

Henry Chamberlain, Quitandeiras da Lapa, 1818, aquarela, MASP

Ganhadeiras, negras de copa, mucamas e domésticas são algumas nomenclaturas utilizadas para denominar as principais ocupações de mulheres pretas desde o tempo colonial, passando pelo Império até o presente no Brasil. Essas atividades, embora exercidas por homens escravizados, alforriados e homens e mulheres brancos, era de predominância de mulheres pretas e mestiças. E havia diferenças hierárquicas entre as ganhadeiras (vendedoras) autônomas, e aquelas que eram escravizadas e, também, entre as trabalhadoras domésticas.

Vendia-se de um tudo, frutas e hortaliças frescas de excelente qualidade, comida pronta, carnes, peixes, leite e ovos; tecidos, roupas, aviamentos, sapatos. As ruas de Salvador eram abarrotadas de vendedoras. A função de ganhadoras não foi exclusiva do Brasil; as ganhadeiras já existiam em grande número na África Ocidental e Central, e na cidade de Lisboa, Portugal. O exercício no Brasil foi protagonizado por elas por dois longos séculos.

As vendedoras aperfeiçoavam suas práticas de acordo com os avanços, usavam os turbantes grossos na cabeça para apararem tambores de leite, tábuas com frutas, esteiras, alimentos, caixas de vidro para proteger doces das moscas e da poeira. Os ombros seguravam varetas grossas onde se penduravam galões contendo leite na extremidade das duas hastes, e seguiam elas a trabalharem para o ganho do dia.

Para atuar nas ruas as vendedoras tiravam licença. Senhores poderiam tirar licença para suas escravas e até alugá-las para terceiros obterem lucros com as vendas delas. Richard Graham destaca que Genoveva, uma escravizada, pagava a diária de duzentos réis à sua senhora, esse valor correspondia, na década de 1830, a 1,4 quilo de carne.

Ao contrário das trabalhadoras domésticas, muitas vendedoras acumulavam pequenas fortunas, porém, a cor da pele era determinante e não havia brecha para confusões de classe. Elas se vestiam de ouro e prata da cabeça aos pés. Metais e pedras preciosas eram o modo de transformar seus ganhos em liquidez e poupá-los. Com o excedente as ganhadeiras escravizadas compravam a alforria de seus filhos e de seus maridos. A principal distinção entre as ganhadeiras livres, escravas e as domésticas estava na autonomia das primeiras na gestão dos produtos a serem vendidos; no tempo de serviço, pausas de descanso, pontos de trabalho, e na decisão da sua própria dieta alimentar.

A igreja lucrava alugando barracas fixas para algumas vendedoras, algumas freiras enclausuradas alugavam escravas para o ganho da rua. O turbante espesso com uma cavidade sobre o cabelo curto ou raspado servia para alojar peixes, que não podiam ser depositados em esteiras no chão em razão do mau cheiro. Richard Graham conta que a venda de carne fresca, peixe e aves domésticas só podiam ser feitas se a ganhadeira os pendurasse nas cabeças delas, haja vista que muitos moradores da avenida Vitória, atual corredor da Vitória, não queriam vê-las atrapalhando o trânsito deles pelas ruas, ou darem de cara com toda aquela carne espalhada por esteiras no chão. Aqui há uma evidência de como o poder de classe influenciou nas atividades econômicas desde o século XIX e antes desse período. Mas também havia a pressão das próprias vendedoras em se impor e estabelecer suas atividades como um comércio de primeira necessidade. As quitandas se expandiam cada dia mais, as vendedoras apesar de sofrerem investidas de moradores do centro de Salvador, controlavam o espaço púbico com afinco.

Jean-Baptiste Debret, Vendedores de capim e leite, 1835, BPNY

Ganhadeiras escravizadas trabalhavam descalças, enquanto as forras usavam sandálias. Mucamas habitavam o interior da casa grande, cuidando de todos os caprichos das iaiás: catar piolho, dar banho, contar histórias, espantar as moscas e os mosquitos do corpo das sinhás com um abano. Cantar modinhas românticas, enfim. Enquanto isso, as escravas domésticas davam conta de todo o trato da copa e da cozinha, o preparo de todas as refeições e arrumação dos ambientes do lar da Casa Grande. Essas escravizadas domésticas dormiam em quartos altos sem janelas; já as ganhadeiras alugavam quartos nos subsolos das cidades onde não possuíam mobílias, eram quartos de dormir e depósito para guardar mercadorias.

Doceira baiana (c. 1925) é uma das poucas obras do artista plástico piauiense, Lucílio de Albuquerque a representar corpos de mulheres pretas. A maior parte dessas imagens foi produzia por europeus e ajudaram na composição caricatural da Mammy (Mammy stereotype). Essas imagens caricatas sobre negros foram produzidas por homens brancos para entreter os seus pares com quadrinhos e/ou cartoons abarrotados de conteúdo racial. Ao contrário das representações das ganhadeiras, o retrato pejorativo das Mammys trazia nos lábios, pés, mãos, narizes, orelhas representações muito maiores do que qualquer realidade, compondo elementos sobrepujados para depreciar os negros e fazer o branco rir, são elementos externos que fazem parte da estrutura ideológica do racismo, da implantação da eugenia, e das políticas de embranquecimento e de aniquilamento da identidade corporal dos negros.

O modo com que artistas brancos se apropriaram da cultura dos negros da diáspora africana nos Estados Unidos, no Brasil e em todos os países colonizados, permitiu que eles criassem imagens com personagens selvagens e boçais a seus modos, a partir do seu imaginário sobre aqueles negros que eles não conheciam.

Em se tratando das representações de ganhadeiras ou domésticas não se percebe a intenção de enaltecer a figura dessas mulheres, mas descrever e registrar suas presenças percebidas por estrangeiros e ignoradas por cidadãos no cotidiano de Salvador, Bahia. O testemunho de lugares sociais na contemporaneidade remonta ao passado colonial e imperialista do país: a realidade das vendedoras e domésticas que precisam trabalhar muito em troca de pequenos salários, deixando seus filhos, muitas vezes, impelidos para à margem.

As mulheres pretas escravizadas no Brasil, no entanto, não protagonizaram apenas o trabalho no ganho da rua, nem tão somente as atividades domésticas na Casa Grande. Essas, segundo o historiador italiano, o jesuíta, Giovanni Antônio Andreoni (1649-1716), ou João Antônio Andreoni (João Antonil), muitas delas trabalhavam o pesado nas fazendas e lavouras, fazendo uso de foice, facão, enxada, assim como os homens pretos escravizados. No entanto, na mata, apenas os escravos do sexo masculino poderiam fazer uso do machado.


Para leitura completa do texto, buscar a referência em:

PEREIRA, Túlio Henrique. Da cabeça aos pés: uma história do corpo na formação das visualidades afro-brasileiras. In: GONÇALVES, Cláudia Cristina da Silva Fontineles; SOUSA NETO, Marcelo de; SANTOS, Alessandra Lima dos; PINHO, Allan Ricelli Rodrigues de (orgs.). Tecituras da História. Teresina: EdUESPI, 2021. pp. 31 - 51.


Indicação de leituras:

André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1963)

Caroline Fernandes, História de vendedoras: arte e visualidade no Brasil (2008)

Cecília Moreira Soares, As ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX (1996)

Gilberto Freyre, Casa-grande & Senzala (2000)

Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos (2006)

Lilia M. Schwarcz e Flábio Gomes, Dicionário da escravidão e liberdade (2018)

Maciel Henrique Silva, Pretas de honra: vida e trabalho de domésticas e vendedoras no Recife do século XIX (1840-1870), (2011)

Richard Graham, Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador, 1780-1860), (2013)

Túlio Henrique Pereira, Da cabeça aos pés: uma história do corpo na formação das visualidades afro-brasileiras (2021)

Túlio Henrique Pereira, Pele e sensibilidades: práticas de memórias e identidades do negro na literatura (1909-1940)

Túlio Henrique Pereira, Que coisa é essa, yoyô?: cor e raça na imprensa ilustrada da Bahia (1897-1904), (2016)

Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho, Uma história do negro no Brasil (2006).

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