Da cabeça aos pés: mães pretas

Lucílio de Albuquerque, Mãe Petra (1912), óleo sobre tela, 180 x 130 cm, Salvador, Museu de Arte da Bahia

O destino de Ícaro
O sangue de preto
As asas de ar
(Adriana Calcanhotto, 2020)

No dia 02 de junho de 2020, aos cinco anos de idade, Miguel Otávio Santana da Silva, morreu após cair do 9º andar do edifício Maurício de Nassau, no bairro São José, em Recife, Pernambuco. Enquanto seu filho despencava para a morte, sua mãe, Mirtes Renata Santana de Souza, empregada doméstica de 33 anos, passeava com o cachorro da sua patroa. Mirtes trabalhava durante as políticas de isolamento social em decorrência da pandemia da COVID-19.

Mãe Preta (1912) é obra de autoria do pintor piauiense, Lucílio de Albuquerque (1887-1939). A escravidão ainda era oficializada no Brasil quando Lucílio nasceu, na cidade de Barras, Piauí.

Mãe Preta é uma das pinturas mais emblemáticas das primeiras décadas do pós-abolição, ela denuncia práticas do racismo sistêmico. Há conexão residual entre aquela ama de leite anônima do início do século XIX e a empregada doméstica ao cuidar de um cãozinho no século XXI. O desamparo a conectar essas personagens sintetiza o lugar fixado pelas mulheres negras em posição de subalternidade no processo histórico nacional.

A mãe olha atenta para o filho estirado no chão; a cabeça da criança está inclinada em direção ao corpo dela a amamentar uma criança branca em tecidos brancos. A criança no chão não possui roupas na parte inferior do corpo, repousa sobre um tecido rígido e manchado, enquanto o bebê branco se aconchega no regaço da mãe preta, alimentando-se dela, consumindo a energia que ela produziu ao se tornar mãe.

Independente do quanto trabalhem ou estudem, essas mães pretas jamais sairão da marginalização imposta pelo racialismo. Crianças negras não são percebidas como crianças, embora quando adultas sejam infantilizadas. São inúmeras as piadas que sexualizam personagens negras na infância, como Cirilo da novela Carrossel. Desde o século XIX, criou-se registros de crianças pretas se arrastando no chão dos cafezais, nas salas de jantar da Casa Grande implorando por migalhas de seus senhores e, em muitos casos, a disputarem as sobras de comida com os bichos de estimação.

J. B. Debret, O Jantar, aquarela

O francês J. B. Debret, em seu livro A viagem pitoresca e histórica ao Brasil desenhou uma cena a flagrar os costumes das famílias da elite durante o jantar, na legenda da imagem o viajante escreveu na página 108, “o jantar de um negociante era um ato íntimo sem o menor vestígio de etiqueta. O patrão queria comer inteiramente à vontade e já se preparando para o descanso que se seguia à refeição. A mulher entretinha-o com seus negrinhos de estimação. O calor e as moscas exigiam a presença de uma escrava com uma espécie de abano-espanador. Mulheres e crianças comiam com os dedos”.

Criminalizadas e desamparadas desde a Colônia, o índice de mortalidade entre crianças negras era alto, e seu valor desimportante para os senhores que preferiam importar jovens adultos. Suas mães, alugadas por alto preço para trabalharem como amas de leite, não lucravam para viver com dignidade.

A escravidão era a base da economia no Brasil Colônia, o escravizado servia como mão de obra e, também, como produto a ser comercializado. A manutenção de uma criança escrava podia gerar prejuízos e seu futuro era incerto. Com menos de um ano de trabalho, um jovem adulto devolvia ao seu proprietário o valor investido na compra, portanto, crianças negras, ainda que mestiças não despertavam o interesse de seus senhores.

Essa prática parece ter sido reificada durante o pós-abolição quando se percebe registros históricos sobre a criminalização, desprezo e índice de mortalidade de crianças e jovens negros, especialmente quando se nota os índices de mortalidade, abandono parental e encarceramento de negros na contemporaneidade.

A socióloga brasileira Irene Rizzini escreveu o livro A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente, e em parceria com o sociólogo chinelo Francisco J. Pilotti organizaram a obra A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Na obra os autores destacam que a perspectiva economicista com a qual senhores tratavam os escravizados, de forma coisificada, contribuiu para “o abandono das crianças escravas ou não, era uma prática bastante frequente até meados do século XIX, mesmo nos países considerados ‘civilizados’”.


J. B. Debret, Regresso à cidade de um dono de chácara, aquarela

O escravagismo facilitou sistematizações e usos particulares na exploração compulsória da mão de obra infantil e, também, de escravizados enquanto produtos de mercado. Em alguns casos, ao perceber um escravo não como humano, mas como produto ou sub-raça, crianças eram expostas desde a primeira infância, seus proprietários buscavam lucrar com a sua criação terceirizada, na esperança de que pudessem recolhê-las quando tivessem a idade para executar atividades laborais. A exemplo da figura Regresso à cidade de um dono de chácara, na qual Debret registrou um “negrinho” a levar um guarda-chuva e a “negrinha” a conduzir uma cesta com tangerinas, laranjas e café, junto à comitiva do senhor.

Há registros na historiografia que denunciam a comercialização de crianças pretas e pardas, mesmo livres, no final do século XIX. No tempo presente, não há comoção profunda quando da notícia de uma criança como Miguel a despencar da altura do nono andar de um prédio residencial, lê-se em comentários das redes sociais que a criança poderia ser de temperamento difícil, que a responsabilidade da patroa não era a do cuidado para com o filho da empregada: culpabiliza-se a vítima. O filho da doméstica, assim como o filho da ama de leite não despertam a sensibilidade de terceiros, especialmente quando esses pertencem a outro extrato social ou fenótipo. Crianças negras ao trabalharem ou se apresentarem em estado de vulnerabilidade nas ruas de grandes centros urbanos, pedindo esmolas no sinal de trânsito costumam acionar nos condutores, o impulso deles de fechar os vidros de seus automóveis.

Foto: Paulo Paiva/Diário de Pernambuco

De acordo com a mãe de Miguel, Mirtes Renata Santana de Souza, o menino estava sob os cuidados de sua ex-patroa, Sarí Mariana Costa Gaspar Corte Real, 31 anos, a esposa do prefeito de Tamandaré, PE, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), Sérgio Hacker Corte Real, 31 anos.

A cantora e compositora brasileira, Adriana Calcanhotto, compôs e divulgou uma canção no mesmo ano da morte de Miguel, intitulada 2 de junho em homenagem ao menino. A letra da música faz alusão ao anjo Ícaro subvertido pela enunciação da coloração do sangue preto em referência à criança morta.

O mundo como o conhecíamos não é mais o mesmo após a pandemia estabelecida pelo novo Coronavírus (Covid-19). As pessoas não revelaram a sua melhor faceta solidária, democrática, inclusiva e fraterna, como muitos comunicadores e teóricos acreditaram. A pandemia da Covid-19 surgiu como uma onda no avanço das políticas de austeridade trazidas pelos governos de alinhamento liberal, conservador e fundamentalista ao redor do mundo. Discursos negacionistas, práticas racistas, machismo e opressões contra as liberdades individuais passaram a ser cada vez mais recorrentes.

A morte do menino Miguel fez com que as mídias sociais trouxessem, em forma de reprodução digital, a pintura Mãe preta (1912), com a referência completa do seu pintor, Lucílio Albuquerque, um homem branco de família pernambucana, nascido em Barras, interior do Piauí. Segundo Piedade Epstein Grinberg, Lucílio mudou-se para São Paulo, onde estudou faculdade de Direito até o primeiro ano, ingressando, em 1896, na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

De acordo com Maraliz de Castro Vieira Christo, o pós-abolição no Brasil povoou o país com imagens de negros. Christo traz a pintura Mãe preta (1912), de Lucílio de Albuquerque, como uma das obras de maior destaque nas primeiras décadas do pós-abolição no Brasil.

Nas redes sociais a mãe preta do quadro de Lucílio de Albuquerque foi tratada como uma alegoria que sintetiza o lugar fixado pelas mulheres negras em posições de subalternidade social ao longo do processo histórico nacional. Impressiona o fato de, pela primeira vez, testemunhar uma obra de arte brasileira, produzida nas primeiras décadas do século XX, reproduzida com a intenção de denunciar práticas racistas estruturais, como o fato da negligência aos cuidados de uma criança negra pela ex-patroa ocupada com o embelezamento das unhas.

A representação da mulher na cena foi pincelada na cor marrom, com partes assombreadas na altura do ombro despido, os braços e mãos receberam estudos mais detalhados para dar a impressão de movimento. A mulher possui musculatura de quem se exercita com frequência. Ela veste tecidos brancos na altura do torso recobrindo o seio no canto direito da imagem; está vestida com saia longa com muito tecido na cor rosácea, na altura da cintura até os pés descalços.

O pé direito da personagem, à esquerda do espectador da imagem chama atenção porque a planta está levemente flexionada para o espectador, mas em sentido que vai ao encontro do filho, como se a intenção fosse de empurrá-lo para mais longe de si. A mulher olha atenta para o filho preto estirado no chão, não se sabe a direção do olhar da criança negra, mas a cabeça está inclinada em direção ao corpo da mãe que amamenta uma criança branca vestida em tecidos brancos. Há um contraste na imagem da vestimenta das duas crianças, a negra não possui roupa na parte inferior do corpo, ela repousa sobre um tecido rígido e manchado. 

Não há dignidade nessa cena senão a representação do corpo inteiro e dos detalhes técnicos que evidenciam partes mais elaboradas dos membros corporais, os tecidos, braços, dedos, melancolia nos gestuais, as tranças e a textura do cabelo, os fenótipos. É uma obra diferente daquelas em que os estudos se detinham à representação da cabeça das personagens negras, ignorando o resto do corpo, seja pela falta de técnica ou pelo desinteresse em desenvolvê-la para a representação desses corpos marginalizados.

Mãe preta (1912) foi apresentado pela primeira vez no ano em que Lucílio de Albuquerque recebeu medalha de ouro pela pintura Despertar de Ícaro (1910) pela 19ª Exposição Geral de Belas Artes da Escola Nacional de Belas Artes.

Não se pode considerar que a representação de Mãe preta (1912) tenha se baseado em uma cena ocorrida, testemunhada pelo autor. Sabe-se que muitas pinturas se baseiam em um emaranhado de experiências visuais, e a composição das cenas não estão fixadas ao testemunho da verdade inconteste. Sim, o lugar empobrecido era comum na vivência de mulheres negras libertas no contexto do pós-abolição, mas havia exceções já durante o Império, quando muitas escravas conseguiam comprar suas alforrias com o dinheiro do ganho enquanto outras até alcançavam algum privilégio socioeconômico, se tornando proprietárias de imóveis e até de escravos.

Em um contexto de transformações e resistências, impulsionados pelo movimento antirracista estadunidense Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), o Brasil do ano de 2020 parece ter se despertado para a necessidade da união e da vontade de ocupação no diálogo sobre o racismo permanente nas estruturas sociais que perpassam o campo político, jurídico, as representações visuais nas mídias de consumo e costume em suportes indoor e outdoor, e, especialmente nos ambientes intelectuais, de poder e no campo das afetividades. Nilma Lino Gomes já havia alertado sobre algumas transformações na sociedade brasileira, impulsionada pelos modelos estadunidenses, como a luta pelos direitos civis que fortaleceram no Brasil, o Movimento Negro Unificado (MNU).

Miguel Otávio, arquivo pessoal Mirtes Souza 

A autora considera que muitos foram os avanços alcançados pela população negra no Brasil, mesmo diante dos desacordos entre uma parte da elite não-negra, que se especializou em assuntos da negritude no país. As considerações da pedagoga consideram a existência de um movimento negro educador, cujas vitórias promoveram um pouco mais de equidade social entre negros e brancos. Ainda que essas mudanças não tenham ocorrido na proporção desejada, elas ocorreram, e suas considerações estão em acordo com as concepções do sociólogo Carlos Hasenbalg.

Ao fazer uso da obra de um pintor branco a denunciar práticas do racismo sistêmico no país, e referenciar a letra da canção de uma compositora branca, essa ação serve como um modo de alertar para o fato de que a luta antirracista ocorre pontualmente entre brancos e negros desde períodos remotos da história brasileira, mas que, no entanto, precisa de mais engajamento para fortalecer e combater os prejuízos raciais que afetam a vida de negros na estrutura sociocultural, política, jurídica, afetiva e econômica. Um problema sistêmico que não foi criado ou protagonizado por negros.

Para leitura completa do texto, buscar a referência em:

PEREIRA, Túlio Henrique. Da cabeça aos pés: uma história do corpo na formação das visualidades afro-brasileiras. In: GONÇALVES, Cláudia Cristina da Silva Fontineles; SOUSA NETO, Marcelo de; SANTOS, Alessandra Lima dos; PINHO, Allan Ricelli Rodrigues de (orgs.). Tecituras da História. Teresina: EdUESPI, 2021. pp. 31 - 51

Comentários

Raimundo Silvino disse…
Estimado Túlio, li seu texto. Apesar da angústia gerada pela descrição feita por sua análise, sobre as condições sociais das crianças negras no Brasil escravista e pós-abolição, considero sua constatação algo ainda mais angustiante: o Brasil chegou ao século XXI com perfil de especialista em pilhagem de tudo que se refere ao negro. Pilham nossos corpos, cultura, história, arte, voz e, o mais grave, nossa vida.

Seu texto é um chamado não à reflexão, pois estou cansado de reflexão em quarto de leitura, mas a ação. Não há como se calar diante de assassinatos de negros, sob pena de ser acusado como cúmplice pela história. A História é implacável.

Raimundo Silvino do Carmo Filho
Túlio Henrique disse…
É uma luta constante, Silvino. Você foi no cerne da questão: estamos cansados de refletir.