Elizabeth Belle: Qual a relação entre Dido Belle e o medo dos negros de serem fotografados?

Dido Elizabeth Belle com sua prima Elizabeth Murray (1761-1804), atribuída anteriormente a Johann Zoffany (1733-1810). Atualmente atribuída a David Martin

Há muitos mistérios em torno da pintura histórica em óleo Dido Elizabeth Belle com sua prima Elizabeth Murray (1761-1804), atribuída por longos anos ao pintor alemão radicado na Inglaterra, Johann Zoffany (1733-1810). Atualmente estudiosos atribuem a autoria da pintura ao inglês, David Martin (1737-1797).

O quadro pertence ao acervo do Palácio de Scone, no condado de Perthshire, na Escócia. Na pintura há vestígios históricos para a narrativa daquela que pode ter sido a primeira mulher negra filha da aristocracia inglesa, Dido Elizabeth Belle (1761-1804).

São comuns os relatos sobre a dificuldade de se encontrar arquivos capazes de auxiliar historiadores e pesquisadores na compreensão da experiência vivida de personagens negras. Poucos são aqueles que se interessam pela temática, haja vista a maior parte dos pesquisadores das humanidades sejam pessoas brancas, somado ao fato de temas sobre negros, negritudes, África e diáspora africana serem assuntos de interesse recente das academias pelo mundo. Ainda sem consenso entre os acadêmicos tradicionais ou não.

A partir de arquivos heterogêneos encontrados na Jamaica, Índia e no Reino Unido, de alguns poucos estudos como o ensaio Estória real de Belle de Sandra Averhart, arquivos nacionais ingleses, como o testamento de Sir John Lindsay, coronel por Brevet a serviço da Companhia das Índias Orientais (1823), arquivos eclesiásticos da Índia sob domínio inglês, entre outros, é possível investigar um pouco sobre uma das figuras mais enigmáticas e opacizadas pela historiografia inglesa tradicional, Dido Elizabeth Belle Lindsay.

A partir do filme Belle (2013), da cineasta Amma Asante, baseado na história imaginada a partir da pintura, o nome e a história desta mulher negra começaram a circular entre o universo acadêmico das artes inglesas com mais vigor, especialmente pelo fato de o filme trazer à luz uma pintura a registrar uma face histórica da sexualidade de homens da aristocracia inglesa em suas incursões imperialistas. O filme, assim como os documentos acessados não trazem o elemento violento que caracterizava o estupro de mulheres negras livres e escravizadas. Todavia com olhar crítico e atento, é possível estabelecer conexões dessas relações indesejadas, cujas proles em decorrência delas eram rejeitadas pela aristocracia inglesa.

Ainda que Dido Belle Lindsay seja reconhecida como uma filha herdeira, registros confirmam a condição de ilegítima, por se tratar do fruto de uma relação extraconjugal do seu pai biológico Sir John Lindsay e da sua mãe Maria Bell(e). Casado com Mary Milner (1739-1799), Sir John Lindsay não teve filhos deste matrimônio, sendo sua prole toda constituída por amantes predominantemente negras - as incursões coloniais são repletas de vestígios históricos que denunciam o hibridismo racial protagonizado pelos colonizadores e mulheres colonizadas. Grande parte dessas relações não eram estabelecidas por vínculos de afeto, as crianças geradas através delas eram consideradas bastardas, ilegítimas e esquecidas/ignoradas pelo patriarca.

No artigo Dido Elizabeth Belle – Novas informações sobre os seus irmãos, publicado no sítio NCGOVOTE.ORG há evidências da existência de ao menos quatro irmãos de Dido, sendo eles John Edward Lindsay, filho de Mary Vallet; An Lindsay, filha de Sarah Gandwell; Elizabeth Lindsay, cujos registros também apontam o uso do apelido Palmer, filha de Martha G.; e John Lindsay, filho de Francis Edwards.

Maria Bell(e): a mãe de Dido e o imperialismo inglês


Gravura da Igreja de São George, em Bloombury, Londres, em 1799. Dido Belle foi batizada nela em 1766


Dido Elizabeth Belle foi batizada aos cinco anos de idade na Inglaterra, e dada aos cuidados do seu tio avô William Murray (1705-1793), 1º Conde de Mansfield e sua esposa Elizabeth Finch (1723-1784).

As evidências sobre a origem da mãe de Dido, Maria Bell(e) não são consensuais quanto ao fato dela ter sido uma mulher livre ou escravizada. Segundo registros de Thomas Hutchinson, Maria Bell(e) foi levada para Londres a bordo do navio negreiro francês, denominado Bien Aimè, capturado na costa de Guiné-Bissau com forte carregamento de açúcar, em maio de 1761, porém rebocado até Bunce Island, na costa de Serra Leoa.

As evidências da presença de Maria Bell(e) na Inglaterra se dão a partir da movimentação dos negócios de Sir John Lindsay, quando este transferiu uma propriedade em Pensacola para Maria Bell(e), para que ela construísse uma casa no terreno. Maria Bell(e) viveu em Londres, mas se mudou para a América. No documento, ela era referida como “uma mulher negra de Pensacola, e depois residente em Londres”.

No filme Belle, diferentemente da documentação disponível há uma narrativa romântica e política, com tensionamentos acerca da influência que Dido Belle pode ter tido para o fim do tráfico negreiro.

Belle se manteve reclusa pela família Murray sem muitas evidências sobre seus anseios, angústias e desejos. Parte do que ela poderia ter pensado foi desenvolvido no filme de Asante. Ela foi educada junto com sua prima órfã, Lady Elizabeth Murray, ambas ao modelo das senhoritas inglesas daquele contexto na propriedade Kenwood. Belle morou lá por 30 anos. Em seu testamento de 1793, Lorde Mansfield reforçou a liberdade dela e forneceu uma soma total e um rendimento anual para ela.

Fotografia e distorção: padrões normativos que excluem

No projeto inglês da atualidade Pintando nosso passado: a diáspora africana na Inglaterra a artista plástica Mikéla Henry-Lowe recriou o retrato de Dido Belle individualmente


Corpos e peles negros se constituíram historicamente enquanto objetos voltados para o trabalho, a subalternidade e a sexualização, a última implicada diretamente à representação das imagens de mulheres negras. Produziu-se uma homogeneidade iconográfica suprimindo a diversidade identitária, racial e cultural de povos negros, em nome da técnica e da padronização nas artes da pintura, desenho, gravura, escultura. Meios de alcançar resultados com metodologias normatizadas e ágeis. Essa busca metodológica afetou também os retratos e as fotografias.

A padronização técnica para a produção facilitada e a reprodutibilidade artística construiu imagens homogêneas que não respeitaram os modos diversos que poderiam representar os corpos negros, especialmente o corpo da mulher negra, que dificilmente ganha representações exclusivas, ou seja, destituídas da companhia de outras personagens, seja essa mulher uma mestiça herdeira de um aristocrata inglês como Dido Elizabeth Belle Lindsay, ou uma escravizada no ato do açoite no pelourinho. Ambas terão os mesmos traços disformes, e estão vinculadas a outras pessoas na cena ou à subalternidade. Europeus até o século XIX não desenvolveram técnicas para criação de corpos negros, assim, se restringiam às cabeças, ou entintavam de preto corpos com estrutura ao modelo caucasiano. 

No filme Belle (2013) é interessante acompanhar o incômodo sentido por Belle quando se deparava diante de alguma pintura de retratos. Ela não queria ser retratada porque nessas pinturas, em favor de grandes nomes, as personagens centrais possuíam fenotipia caucasoide e pertenciam à aristocracia. Esses grandes nomes estavam sempre acompanhados por escravizados negros, à margem da pintura, em posição de subalternidade no plano inferior, no ato de servir.

A pintura e o filme nos orientam sobre algumas das facetas do difícil processo histórico pelo qual pessoas negras constituíram representações iconográficas. São raras as imagens a trazer negros representados sozinhos, em posição suntuosa, elegante, dignificante, descontraída ou no interior do lar, em repouso ou lazer. Com sorrisos e feições afetuosas.

A socióloga canadense, Lorna Roth, investigou entre os anos de 1995 e 2012 a relação de pessoas negras com suas representações na fotografia, revelando o modo como a indústria das imagens desenvolveu tecnologias para supervalorizar as peles e os corpos brancos e excluir os tons de pele escuros.

Pessoas negras apresentam comportamentos distorcidos em relação a sua imagem representada. Evitam ser fotografadas e desenvolvem transtornos em razão desse longo processo histórico que produziu imagens negativas de suas peles e corpos. Os primeiros filmes fotográficos não foram feitos com emulsões capazes de calibrar a cor da pele escura. Nesses casos, apenas o branco dos dentes e dos olhos apareciam em fotos reveladas contendo pessoas negras. Isso fez com que negros evitassem ser fotografados durante muitas décadas, além de render piadas e produzir estigmas: racismo recreativo.

A cor de pele branca foi constituída enquanto um padrão normativo de calibragem, ou seja, um padrão tecnológico normativo. Belle preferia nunca ter sido retratada em uma pintura a ser subjugada pela companhia superestimada de um branco, o que não aconteceu, embora a sua imagem se apresente em segundo plano, atrás da sua prima Elizabeth Murray.

Lendo um retrato: a moda que denuncia o contexto

Gravura da propriedade Kenwood de 1788, onde Dido Belle viveu por longos anos


No perfil do Instagram @fitfashionhistory ao analisarem o retrato de Dido Elizabeth Belle, há o questionamento sobre a autoria e a datação da obra que antes era atribuída a Johann Zoffony, e agora a David Martin. No texto há a problematização quanto a datação do retrato ter sido concebido em 1778, o que gerou dúvida de historiadores quanto a idade de Dido Belle, especialmente em razão das escolhas do motivo moda infantil para a época proposta, sendo mais coerentes para o final da década de 1760, quando as duas ainda eram crianças.

O texto da postagem no perfil @fitfashionhistory traz evidências do afeto que os Murray tinham para com Dido Belle, especialmente a cumplicidade que Dido e sua prima de segundo grau mantinham, “elas são citadas em fontes que revelam gostar uma da companhia da outra, e ficou claro que Dido era extremamente amada e aceita dentro de casa. Mansfield era protetor com ela, afirmando claramente em seu testamento que Dido era uma mulher livre”. @fitfashinhistory.

Alguns historiadores discutem se Martin pintou as duas meninas como iguais ou não. No século 19, muitos analistas pensaram que este era o retrato de uma concubina e sua subalterna; no entanto, a verdade é que Dido era uma dama da alta sociedade inglesa. Outros historiadores interpretaram suas poses e expressões como irmandade e companheirismo, Dido sendo retratada com condição igual a de sua prima, pois ela também está olhando diretamente para o espectador do quadro. @fitfashionhistory

Detalhe retrato de Dido Elizabeth Belle Lindsay


O sorriso brincalhão e a pose infantilizada de Dido sugerem ainda que a pintura foi feita no final da década de 1768, pois ela teria cerca de oito anos de idade, em vez de 18 em 1778.

Ela usa um corpete de cetim de seda branco com turbante combinados, e uma pena de avestruz. Os turbantes na moda foram derivados da moda masculina turca e indiana, mas deslocados/desapropriados de seu verdadeiro significado e cultura de origem. @fitfashionhistory

Conjuntos como o dela eram típicos em retratos para adicionar elementos de fantasia e exotismo. É provável que Martin tenha escolhido essa roupa para ela adicionar um sentimento caprichoso, em vez de ela mesma ter escolhido.

Elizabeth Murray é representada usando um conjunto infantil típico do final da década de 1760, acrescentando mais especulações sobre a verdadeira data do retrato. Seu vestido apresenta um avental com babados com forro transparente, o que era considerado infantil demais para uma mulher de 18 anos (sua idade em 1778). Se o retrato é realmente da década de 1770, as meninas foram pintadas propositalmente para parecerem infantis. No entanto, é provável que seja da década de 1768, quando ambas ainda estavam na infância. @fitfashionhistory


Fontes:

Women in History – Dido Elizabeth Belle. Disponível em: https://www.english-heritage.org.uk/learn/histories/women-in-history/dido-belle/

Dido Elizabeth Belle – Novas informações sobre seus irmãos. Disponível em: https://ncgovote.org/pt/dido-elizabeth-belle-novas-informações-sobre-os-seus-irmãos/

Arquivos nacionais: PROB 11/1665/109, Testamento de John Lindsay, Coronel por Brevet ao serviço da Honorável Companhia das Índias Orientais sobre o seu Estabelecimento de Madras, Índias Orientais, 9 de janeiro de 1823

British India Office deaths, burials and ecclesiastical returns

The Asiatic Journal and Monthly Register for British India and its Dependencies, volume XII, Julho a Dezembro de 1821

Dido Elizabeth Belle: uma rapariga negra na Kenwood, Gene Adams, Camden History Review 12, 1984, p.10-14

Sussex Advertiser, 11 de maio de 1761

Aberdeen Press and Journal, 17 de agosto de 1761

Caledonian Mercury, 11 de janeiro de 176

N.B. Mary Milner, esposa de Sir John Lindsay, nasceu a 11 de fevereiro de 1739 em Londres

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