Entrevista para G1 Piauí

Em 2 de fevereiro de 2023, fui contatado pela jornalista Ilana Serena, repórter do G1 Piauí, portal da Rede Clube, afiliada da TV Globo, para conceder uma entrevista acerca do colorismo. A motivação para a realização da reportagem estava relacionada ao fato de o deputado estadual Franzé Silva ter sido o primeiro homem negro a assumir a presidência da Assembleia Legislativa do Piauí. Todavia, o deputado sofreu críticas por seus pronunciamentos, especialmente porque muitos discordavam de sua autodeclaração como homem negro de pele clara. A proposta da entrevista, então, foi promover o debate sobre identidade negra, sobre o que é o colorismo e o processo de embranquecimento. Dois anos depois, segue a entrevista, abaixo, na íntegra e, ao final, o link de acesso à reportagem publicada no portal G1 Piauí.


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G1 PI: O que é colorismo?

Túlio Henrique Pereira: Para nos situarmos no debate, é importante compreendermos que, no continente africano, em seu processo histórico ancestral, já existiam pessoas africanas não retintas. É preciso acabar  com essa ideia de que africanos são uniformemente pretos retintos. Não são. Os fenótipos também não são uniformemente negroides entre todos os povos da África, nem agora nem no passado. Há africanos de olhos azuis, verdes e castanhos; há africanos com peles mais claras e retintas, narizes afunilados e de abas avantajadas. O continente africano é plural e diverso, e muitos dos conflitos internos — a exemplo do protagonizado pelos povos tutsis e hutus, em Ruanda, em 1990 — perpassam disputas territoriais e também étnico-raciais.

Dito isto, seguimos para o universo colonial experimentado nas Américas a partir do século XVI, onde podemos observar que o colono branco, responsável por criar hierarquias raciais, sociais e no mundo do trabalho, percebeu que essas hierarquias acirravam as disputas entre o povo negro — importante registrar que negro é uma categoria utilizada no Brasil com sentido político, representando a população preta e mestiça/parda. Sigamos, então, para a percepção do colono, que faz uso dessa faísca das disputas hierárquicas para acirrar as rivalidades entre negros, ao promover certa mobilidade às pessoas mais claras e manter imóveis os retintos.

O sociólogo Roger Bastide denuncia a criação e o uso da mulata e do mulato enquanto personagens eleitos para alguma ascensão ou apreciação da branquitude no Brasil Imperial. Isso fortalece a discriminação pela cor direcionada ao povo retinto, que continuará sendo percebido como imoral, sujo, fétido, feio, pernicioso, preguiçoso e rude. Ao retinto serão atribuídas qualidades de selvageria e descontrole. Em contrapartida, o mestiço — durante muito tempo tratado pejorativamente por mulato — receberá qualitativos um pouco amenizados, por se aproximar mais do branco do que do preto. No entanto, não podemos nos esquecer de que o mestiço não é branco, tampouco preto; ele se encontra em um entrelugar que poderá lhe custar muito caro no momento de reivindicar um status de pertencimento.

Aos negros de pele clara, o uso da afroconveniência é uma das principais críticas em Bancas de Heteroidentificação racial, por exemplo. Todavia, não podemos nos furtar à realidade do uso daqueles que se denominam pardos no quantitativo censitário, que engrossa o caldo na aprovação de políticas públicas destinadas aos negros no país.

Mas, tentando responder à sua pergunta de modo sucinto: colorismo são as práticas, ferramentas ou dispositivos sociais encontrados pela branquitude para promover disputas e acirrar a hierarquização entre negros, fomentando, a partir do processo de eugenia, o embranquecimento e a miscigenação dos descendentes de africanos retintos. Esse processo oportuniza alguma mobilidade e apreço às qualidades morais e estéticas dos negros de pele clara e fenótipos menos negroides, de modo a exaltar, em circunstâncias de conveniência, aspectos que reforçam a superioridade da branquitude. Ou seja: diz-se que o negro de pele clara, cabelos ondulados e fenótipos pouco negroides é mais bonito ou mais inteligente, “mas ele o é porque se parece mais com o branco”. Sendo assim, o branco é novamente colocado no centro como padrão normatizador de valores positivos.

G1 PI: Sabemos que pessoas negras de pele mais clara tendem a ter pequenas vantagens quando comparadas às pessoas negras de pele mais escura. Embora não estejam blindadas de racismo. Na sua concepção, o que o colorismo diz sobre as relações raciais brasileiras?

THP: Ainda não há uma sistematização que conceitue de forma profunda o colorismo e, enquanto historiador e não antropólogo, posso considerá-lo um fenômeno social experimentado na esfera das relações da população negra — preta e parda — em suas interações de inclusão e exclusão no mundo do trabalho, dos afetos, da escolarização e nos relacionamentos interpessoais. O colorismo é o modo como a população parda reivindica o seu direito à autodeclaração, apropriando-se de sua potência afro-ancestral, que, por conseguinte, apaga ou desestabiliza, em certa medida, a potência do sujeito preto retinto.

Ambos sofrem discriminação no trabalho, tanto os pretos quanto os pardos, porque constituem a parcela dos não brancos; todavia, o preto retinto sofre mais com o desamparo interpessoal nas relações afetivas, por exemplo. Ambos serão alvo do encarceramento massivo, porém o preto retinto não deixa brecha para a desconfiança quanto à sua inocência. Ele também terá mais dificuldades para ascender na carreira, receber o melhor salário ou participar da festa da empresa no condomínio fechado.

O colorismo, enquanto fenômeno social, é uma querela — o residual das relações coloniais em seu processo eugênico — e denuncia a constante fuga para o caminho do embranquecimento, bem como a manutenção do apagamento do preto retinto.

G1 PI: Nessa perspectiva, a presença de pessoas negras de pele clara em espaços de poder pode fortalecer o preconceito e a dificuldade de acesso da comunidade negra como um todo? Como combater isso?

THP: Sim. É assim que se estabelece o fenômeno do colorismo. O colorismo, enquanto residual das políticas eugênicas em favor do embranquecimento, volta-se ao seu objetivo inicial, que é aniquilar a negritude e toda a sua potencialidade. Desse modo, para encorpar o discurso racial do negro, elege-se o pardo, porque este é menos afetado pela negritude, mesmo sendo fruto dela. Todavia, não podemos personalizar essas disputas nem atribuir às pessoas pardas o fardo de sua clareza ou do seu embranquecimento. É preciso reiterar que a responsabilidade continua sendo do colonialismo protagonizado pelos brancos. Esse fenômeno é apenas mais uma teia do racismo sistêmico.

G1 PI: E como formar uma identidade racial? Diria que a negritude vai além da cor da pele, e pode se apresentar também em traços e na herança cultural? Na sua concepção, qual a importância da autodeclaração racial?

THP: Cheikh Anta Diop é um dos pensadores precursores do panafricanismo. Desde a década de 1970 já se discute o fato de que a identidade racial não pode ser definida apenas pela cor da pele. O conceito biológico de raça não é uma criação africana, assim como o conceito de cor também não foi. Foram os ocidentais e os povos da Península Arábica que denominaram os etíopes com nomes que, tempos mais tarde, descobrimos serem negativos por aglutinarem valores depreciativos. Há discussões muito profundas na antropologia e na sociologia acerca dos marcadores raciais, e estas incluem aspectos étnico-culturais.

No entanto, costumo ser um pouco mais objetivo, mesmo sabendo que objetividade não existe. Defendo, por enquanto, um conjunto fenotípico para demarcar identidades raciais, e esse conjunto inclui cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz, desenho dos olhos, pelos corporais, enfim, muitos fatores. A autodeclaração é também resultado de uma disputa política travada pelo Movimento Negro espalhado pelo mundo, especialmente nas Américas.

Enquanto instrumento jurídico, a autodeclaração foi sancionada internacionalmente pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1989, e não prevê aspectos de assimilação, mas o reconhecimento da autoidentificação de si. Esse instrumento passou a ser útil para políticas indigenistas e afrodiaspóricas em todo o globo.

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Essa entrevista foi utilizada para a construção da matéria: Primeiro negro a presidir a Assembleia Legislatia do Piauí, Franzé Silva critica questionamentos: ‘que engulam seu racismo’ – Disponível em: https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2023/02/04/primeiro-negro-a-presidir-a-assembleia-legislativa-do-piaui-franze-silva-critica-questionamentos-que-engulam-seu-racismo.ghtml

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