Swarm: da indisponibilidade à invisibilidade transgressora do corpo retinto feminino



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Qual a eficácia simbólica de uma produção cultural e o que estabelece a recepção massiva de discursos e imagens capazes de amalgamar sentidos a produzir toda uma sociedade imaginante? Disponível no aplicativo de streaming Amazon Prime Vídeo, a primeira temporada da série de humor dramática, com terror, Swarm (Enxame, EUA, 2023), produzida e roteirizada por Donald Glover e Janine Nabers, faz uso da crítica em torno do comportamento massivo dos grupos de fãs em torno da construção totêmica ou obsessiva de seus ídolos, especialmente artistas da música e da televisão que se tornam deuses intocáveis e protegidos de qualquer um que possua pensamento divergente quanto a sua produção artística e qualitativos.

Andrea Greene ou Dre, a personagem da atriz Dominique Fishback, é a administradora de um fã clube nas redes sociais dedicado a carreira e a vida da cantora de música pop Ni’Jah (Bown), o argumento central da série se orienta pela construção da imagem da popstar Beyoncé Knowles (Queen Bee – Abelha Rainha) e seus milhares de seguidores autodenominados Beeyhive ou BeyHive.

A personagem central, Dre, oscila entre a introspeção, invisibilidade e a representação tensionada e desmoralizante do corpo da mulher preta retinta. Segundo os pesquisadores franceses Gilles Boëtsche e Eric Savarese, e a filósofa estadunidense, bell hooks, trata-se de um imaginário construído pelo patriarcado ocidental, responsável por vincular mulheres negras à dualidade de suas funções sociais no ocidente: o da mulher sexualmente disponível e descartada e o da mãe preta, sempre disposta a atender e cuidar, ainda que seu corpo lido como desviante, seja pelo excesso de peso, “fealdade” ou o avanço da idade, a torne descartável e dispensável de qualquer afeto.

[A partir daqui contém spoiler] 



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Andrea Greene é, inicialmente, uma jovem retinta que se esconde por detrás dos seus cabelos e do excesso de roupas que usa. Introspectiva, com olhar perdido e esvaziado, ela parece sintetizar o tempo da individualidade dos sujeitos solitários ou daqueles que preferem à solitude, enquanto se multiplicam em comunidades pelo Twitter e Instagram conectados pela idolatria de seus ídolos. Esse, muitas vezes, parece ser o único condão a dar sentido às suas vidas.

Ainda segundo bell hooks, as produções culturais no presente, mesmo as criadas por pessoas negras, recuperam a concepção de corpo mutilado e descartável construída no século XIX, especialmente em se tratando das imagens totemizadas dos corpos de mulheres negras na cultura popular, especificamente na música pop estadunidense.

Legiões de fãs se organizam em prol da adoração de personagens da indústria musical predominantemente brancas, a exemplo de Lady Gaga, Anitta, Taylor Swift, Ariana Grande, Billie Eilish, Britney Spears, Madonna, Mariah Carey, Justin Biebier, One Direction, Coldplay, Harry Styles, Ed Sheeran, Maroon 5, Shawn mendes, Jon Bon Jovi, Eminem, Elvis Presley, Sam Smith, entre tantos outros, de modo que esse corpo coletivo parece esvaziar-se de sentidos para significar a existência e a manutenção, com relevância, das personas criadas para que esses artistas se tornem produtos de fácil captação, perpetuando sua longevidade no mercado a aprofundar uma horda de adoração e culto em torno deles. O fetichismo no jogo capitalista a funcionar como um instrumento de zumbificação. Essa é uma das razões, portanto, de a indústria da música pop, produzir novos ídolos mirando no mercado adolescente da faixa dos 13 aos 18 anos.

É neste constructo que a personagem de Andrea Greene é flagrada constantemente sem propósitos que não sejam perseguir (seguir) a vida de Ni’Jah. Qualquer um que se apresente como obstáculo ou oposição deve ser por ela eliminado. Dre segue assassinando homens negros que já escreveram no Twitter qualquer coisa contra seu ídolo, Ni’Jah. Na primeira tentativa de matar uma mulher branca, a produção de Donald Glover, bastante atenta, cria um conjunto de tensão para que no clímax, Dre não assassine apenas uma, mas várias delas, incluindo a popstar Billie Eilish. De um corpo dispensável e invisível, Andrea Greene transmuta e passa a ocupar a invisibilidade de um corpo disponível, transgressor e justiceiro.

bell hooks argumenta que a mulher preta enquanto agente de comportamentos capazes de transformar a lógica do imaginário popular que a vincula na condição de chupadora, em razão de uma possível performance sexualmente quente, da dimensão larga de seus quadris, da protuberância zoomórfica de suas nádegas e seios avantajados em contraste com a cintura fina. Não obstante a crítica mais contundente às artistas pop negras está no obscuro caminho que as inclina na busca pelo sucesso comercial, momento em que essas mulheres assumirão os mesmos recursos de popstars brancas, assumindo as imagens totemizadas de seus corpos mutilados para chamarem atenção da audiência, que não estaria preocupada, a princípio, na sua qualidade vocal, ou musical, mas sim, nas suas partes físicas. A exemplo do que aconteceu com Diana Ross, Aretha Franklin, Whitney Houston, Tina Turner, Beyoncé, Rihanna, Janet Jackson, Nicki Minaj, SZA, IZA, Doja Cat e tantas outras.

Todavia a inteligência de Donald Glover e Janine Nabers, a exemplo de Spike Lee, ao subverterem os esquemas corporais responsáveis por vincular essas mulheres no imaginário ocidentalizado e puramente capitalista, Andrea ganha dimensões muito pouco exploradas na filmografia e na televisão, sendo percebida em sua vulnerabilidade de protagonista apagada pelo racismo, porém, também erguida por ele, ao mesmo passo que se vitimiza pelo capitalismo mumificador.

Na coluna deste domingo do jornal Folha de São Paulo, a jornalista Munah Malek ao escrever sobre o lançamento do livro Louças de Família (Autêntica, 2023), da escritora gaúcha Eliane Marques, aguça a curiosidade do leitor ao trazer o trauma como ponto central do romance. Ao realizar a leitura do release, após ter concluído a primeira temporada de Swarm, refleti sobre a importância do movimento transgressor partindo de escritores e roteiristas pretos conscientes, como Spike Lee, Donald Glover, Janine Nabers, Eliane Marques, entre tantos outros mais ou menos famosos. Estamos diante da inscrição de novas referências para reelaborarmos os nossos traumas, a partir de personagens como Andrea e Eluma, a última do romance de estreia de Eliane Marques descrita por Munah Malek? Ou estamos a tatear através desses traumas, trabalhando em prol da manutenção mecânica de nossas autossuficiências em um mundo capitalista? Encurraladas ou redentoras?

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