Triângulo da Tristeza e as ordens do tempo


Cartaz de divulgação, Triangle of Sadness

[Contém spoilers] Triângulo da Tristeza (Suécia, França, Grécia, Dinamarca, 2022), é uma comédia dramática do diretor sueco, Ruben Östlund, dividida em três atos a satirizar os papeis de gênero e classe. A temática já foi desenvolvida com maestria pelos cineastas veteranos, o britânico Lewis Gilbert, em O Mordomo e a Dama (Reino Unido, 1957), e o sul-coreano Bong Joon-ho, em Parasita (Coreia do Sul, 2019). Os primeiros frames de Triângulo da Tristeza, disponível na plataforma de streaming Amazon Prime, possuem alinhamento irregular, e isso dá ao longa-metragem, com duração de 2h29min, ares de atualização temática e técnica.

Temos neste primeiro ato o bastidor de um casting de modelos masculinos em que o espectador se vê diante da analogia das emoções manipuladas pelo mercado das grandes grifes, como Balenciaga, reconhecida por sua inércia blasé e seus preços exacerbados, e H&M por ser mais acessível e, portanto, alegre e solar. Juntamente com essa sequência a trazer jovens rapazes descamisados de múltiplos fenótipos, perdidos entre o desejo da relevância social e a compensação financeira, haverá um ponto criterioso para a discussão financeira que um jantar suscitará nas cenas entre o casal, Carl (Harris Dickinson) e sua namorada Yaya (Charlbi Dean, falecida).


Frame Triângulo da Tristeza (2022)

Essas representações humanas mitigadas pela arte cinematográfica foi material de análise de vários pesquisadores do cinema e das artes, mas especialmente de filósofos e historiadores, tal como o francês Michel Foucault (1926-1984), a reiterar que esse tipo de representação humana a que estamos acostumados se trata de uma construção muito recente na ordem do discurso em torno das identidades. Raça, classe, gênero, sexualidade e trabalho constituem perspectivas que devem ser mensuradas e distanciadas da concepção de verdade universal, pois fazem parte de uma ordem discursiva localizada nos tempos e nos espaços vividos por cada grupo humano em sua especificidade.

É a partir desta compreensão que Foucault vai extrair as concepções de norma e anormalidade, e estabelecer parâmetros para desenharmos estereotipias e explorarmos a sátira presente nos nichos sociais. É claro que o cinema suaviza muitas das durezas da existência, afinal de contas, assistir a um filme é um luxo do qual poucos de nós podemos acessar. E o fazemos não para nos comovermos, mas para sentirmos algo que o nosso cotidiano nos tolhe de forma implacável: emoções e reflexões.

Carl e Yaya conseguem uma permuta para viajarem em um cruzeiro repleto de milionários caricaturados segundo a visão de Ruben Östlund. Destaque para a cena em que Carl denuncia um trabalhador másculo e peludo que retira a camisa e desperta atenção do casal de namorados. O trabalhador é expulso do navio, mas apenas ao final suporemos o seu destino.

Frame Triângulo da Tristeza (2022)

Até a primeira metade do filme, há uma promessa narrativa do roteiro, que nos mantém apenas na expectativa, pois descamba com uma sequência escatológica que poderia ter se mantido apenas na sugestão das taças de cristal e garrafas de champanhe rolando aos pés das mesas e cadeiras, sobre o tapete no restaurante do navio. E se até o final do primeiro ato os trabalhadores exerciam funções definidamente hierarquizada, no qual foram apresentados como uma massa de pessoas nascidas para servir e agradar às classes privilegiadas economicamente; do segundo ao terceiro atos, temos o crescimento da personagem Abigail (Dolly De Leon), uma mulher filipina, chefe das camareiras que subverterá a ordem de classe e de gênero, impondo, inclusive, a sua sexualidade.

Aparece também a personagem masculina de Nelson (Jean-Christophe Folly), um homem negro de França, que superficialmente estabelecerá uma briga implicitamente racial com um dos tripulantes milionários naufragados na ilha deserta, incomodado pela presença daquele homem negro do qual ele alega não ter visto antes a bordo do navio.

Carl e Abigail vão protagonizar momentos em que o amor que ele alegava sentir por Yaya recairá na suspeição trazida pela personagem Yaya lá no primeiro ato, de que o que importa nessa vida de aparências é ser uma mulher troféu de um homem que possa provê-la economicamente; enquanto, por outro lado, Carl tenta desafiá-la de que o amor existe e que sim, ele poderá fazer com que ela se apaixone por ele. Acontece, porém, que Carl é vencido pela subjetivação do poder estabelecido por Abigail, e passa a ter com ela os momentos de intimidade que antes eram reservados apenas à relação com sua namorada. Carl se vende por pacotes de salgadinho e noites dormidas no barco de resgate.

Ao final o espectador descobre que até mesmo a ilha deserta faz parte de um resort de luxo, e que há um elevador que os levará de volta à realidade desigual experimentada por Abigail e Nelson. Talvez esteja aí o ápice da sátira, o elevador a elevar os ricos de volta ao topo da pirâmide. Neste momento, Abigail e Yaya, ao encontrarem a porta do elevador, vivem o dilema de retornarem à antiga ordem em que Abigail era apenas a serviçal emudecida, ou manter-se nos recônditos da ilha em que ela se tornara capitã. O desfecho se faz de forma irônica e dramática e deixa que as emoções do espectador decidam se Abigail matou ou não Yaya, em razão da descoberta feita por ela. A suspeição também nos oportuniza pensar que Abigail tudo sabia.

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