A hiperssexualização de corpos negros e o desamparo vendido pela indústria da música

Cartaz contém cena fotográfica dos bastidores do novo videoclipe da cantora Anitta, com o título da matéria publicada pelo perfil no Instagram da página @africanizeoficial


Em Vai Malandra! Um modelo negro rouba a cena por apresentar um volume desproporcional do seu membro na roupa de banho cavada. Anitta é uma cantora popular no Brasil com projeção internacional. Ela sabe vender, e como boa empresária do showbusiness ela sabe que o sexo vende.

Em cenas vazadas do seu próximo vídeo, Anitta sobe novamente à favela para garantir o ouro negro: explorar corpos favelados e demarcar a favela enquanto o lugar da hiperssexualização. O alvo deste mercado são os corpos masculinos, construídos para o trabalho e para o sexo desprovido de qualquer possibilidade afetiva.

O poeta martinicano Aimé Césaire, em seu Discurso sobre o colonialismo, fala sobre as cisões enfrentadas por milhares de homens depauperados pelo medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a prostração, o desespero e o servilismo. Enquanto isso, Frantz Fanon, fala dos homens negros que se potencializam por reconhecerem que seus membros, muitas vezes, avantajados e grossos demais para caber em bocas, orifícios e outras partes físicas, se apropriam dessa hiperssexualização para terem encontros casuais com “possíveis interessados”. Fanon escreve: O negro não é um homem, “o negro é um homem negro; isto quer dizer que, devido a uma série de aberrações afetivas, ele se estabeleceu no seio de um universo de onde será preciso retirá-lo.”


Cena do clipe da música Vai Malandra, de Anitta



Homens negros se tornarão homens em sua integralidade quando esses compreenderem que eles também são sujeitos de valor, que eles não precisam compensar para ter companhias fortuitas, não precisam ser sempre viris, ativos, frios; não precisam ter falos grandiloquentes, ou recompensas financeiras; não precisam ser resilientes, pacientes ou apresentar qualquer outra condição que os coloque no lugar da espera, do desvalor. Negros são homens a partir do instante em que tomam consciência da sua condição de autovalor e buscam relações de alto valor. Porque são íntegros. Não são fragmentos penianos ou anais, labiais ou financeiros.

O colonialismo tirou a humanidade de corpos pretos, mestiços e indígenas, e Frantz Fanon argumenta sobre a dificuldade de transformar as pessoas negras em seres de ação, haja vista que essas estão inseridas em um mundo racista e colonial. É preciso mapear as diferentes posições que o preto adota diante da civilização branca.

Aos poucos, alguns cantores e compositores negros conseguem apresentar versões críticas da hiperssexualização de seus corpos, a exemplo do estadunidense Frank Ocean que vive em pé de guerra com a indústria. Na música Nikes, do álbum Blond[e], Ocean critica o desamparo social perante o homem negro que é percebido apenas pela possibilidade de oferecer o falo enquanto moeda de troca nas relações interpessoais. Ele também descreve o universo material que norteia jovens e adultos em torno de pagamentos, drogas ilícitas, jóias, bolsas, tênis e roupas de marca. Um universo líquido cada vez mais fluído e desproporcional às expectativas do vir a ser da negritude que ainda busca circunscrever sua humanidade sensível.

Cena do filme Ninfomaníaca, do cineasta dinamarqués, Lars von Trier


O cineasta dinamarquês Lars von Trier é um dos meus favoritos, porém, comecei a lê-lo com mais cautela ainda na juventude. A partir de um sinal de alerta do viés racial adotado por ele, e é devastador o modo emblemático como ele faz uso de corpos negros em dois únicos momentos de sua carreira: em Manderlay (2005) ele utiliza o argumento da escravidão para mostrar a ingenuidade dos negros escravizados do Alabama; e em Ninfomaníaca I e II (2013), em que Joe, a personagem central, se reúne com um grupo de homens negros para ter com eles o fetiche de ser deflorada por aqueles marginais que se reúnem na praça pública de uma cidade.

Em seu novo videoclipe, a popstar Anitta divulga cenas em que homens negros e mestiços a circunda em um ambiente neutro, há cenas que retratam a favela. Homens com shorts curtos marcados pelo volume de seus membros, sem camisa e com os corpos besuntados. Há novamente uma leitura hiperssexualizada e objetificada desses corpos: corpos para o eito ou o sexo. Silenciados. O que se espera do preto é que ele seja bom: na pegada e na cama ou o bom-crioulo docilizado, “o resto vem naturalmente”. Homens negros não precisam falar, expressar, sentir, desde que eles consigam cumprir suas funções corporais e tenham falos grandes e grossos.

Nossas mentes e nossos corpos foram desterritorializados, os nossos desejos, afetos, emoções e sentidos estão esfumaçados pela psicopatologia da branquitude. O capitalismo vende nossos fragmentos corpóreos, mas também vende em paralelo o desapego, seja nas músicas da Anitta, Ludmilla, Nêgo do Borel, Pabllo Vittar, Wesley Safadão, entre tantos, ou no sertanejo universitário, a exemplo do “a gente se pega sem se apegar”. E não há nenhum problema nessa afirmativa de Gustavo Mioto e Mari Fernandez, a não ser o fato de essas parcerias se bradarem porta-vozes da cultura popular a defender e representar as pessoas nas favelas. 

Cena dos bastidores do videoclipe da música Vai Malandra, de Anitta



Todavia é necessário lembrarmos que a pobreza, a negritude e o espaço da favela não são lugares oficiais para o desafeto, o desamparo, ou a falta do compromisso. Não são a máxima da hiperssexualização. Homens e mulheres negros choram, amam e também sentem.


Cena dos bastidores do videoclipe da música Vai Malandra, de Anitta




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