Biopolítica e o controle dos corpos no Big Brother Brasil (BBB21)


 


Engana-se quem pensa que o entretenimento está restrito somente à arte de entreter. No ano de 1999 a empresa de telecomunicações holandesa, Endemol, a partir do seu sócio criador, John de Mol, criou um formato de programa vanguardista para à TV daquela década, o Big Brother. O título foi inspirado pela personagem principal do livro, 1984, Big Brother (Grande irmão), do autor George Orwell — pseudônimo de Eric Arthur Blair (1930-1950).

O livro trata das disputas sociais estabelecidas a partir das esferas políticas, em que as personagens individuais lutam através do espectro coletivo, aprisionadas numa engrenagem de regime totalitário.

Nessa sociedade sob domínio do Estado, todas as experiências devem ser feitas de forma coletiva, embora cada personagem consciente de que está sozinha. Vigiadas por um Grande Irmão, onipresente e onipotente, capaz de se utilizar dos meios mais cruéis para obter à máxima expressão de cada uma. De modo que não haja a preocupação com a consciência histórica, nem mesmo o sentido humano, apenas o jogo político em prol do domínio do poder.

Baseado nessa premissa, a Endemol exportou o formato para diversos países, e cada um tratou de produzir um reality show no qual pessoas confinadas pudessem experimentar coletivamente experiências exaustivas, a socialização combativa, sexual, afetiva e o reconhecimento de si e do outro, para que, enquanto isso, analisados pelo olho do Estado, ou seja, os espectadores — o Grande Irmão, eliminasse aquele que trouxesse menos ação. Restando apenas o que mais se movimentou.

A lógica do Big Brother, então, seria traçar os limites humanos e suas capacidades sobre-humanas, a racionalidade de burlar regras, enganar adversários e movimentar-se em prol do grande prêmio, o poder. A novidade, contudo, está na ideia de que o Grande Irmão vigilante seria o público espectador, responsável por vigiar, punir, controlar, julgar e cancelar/eliminar determinado participante. Mas eis que é aí onde a confusão se encontra, quem é esse público espectador, o Grande Irmão, e com quais bagagens, balanças e instrumentos de controle ele consegue fazer suas escolhas?

Estado e controle sociais não entram na pauta da programação, o que é exposto ali são personalidades, identidades, modos de agir e pensar, provas de resistência e de convivência. Lá dentro é proibido falar sobre política. Tudo isso gera o entretenimento, mas, por trás disso, ou explicitamente imperceptível ao expectador, leis de mercado e de controle circundam todas as tramas, e o mercado direciona olhares, empatias, estética e valores socioculturais e econômicos. Ao final, o público realmente escolhe?

Ao vencedor, ao contrário do que estudamos em Aristóteles, não se espera o domínio político da ética, mas sim, o controle verbal, o conhecimento superficial de si e do outro, e atitudes que superficialmente seduzam aos olhos do Estado. Há no discurso bem conduzido o encantamento ético e moral dos olhos e das sensações de quem vê com consternação.

Nos países norte-americanos os vencedores desse formato costumam ser aqueles que conseguiram dominar o oponente de forma consciente e calculada. No Brasil, a narrativa maniqueísta, com fácil associação da luta entre o bem e o mal, de modo que se faça alusão ao encantamento moral, selecionam os candidatos mais próximos de uma figura de redenção.

Os vencedores são aquelas personagens em que o caráter e a virtude se concentrariam na incapacidade do embate, sujeitos de frágeis articulações, passivos ao confronto. Contidos em resiliência após o abandono e a contrição fria da sua condição de vítima. Esse discurso, porém, é o oposto das ideias contidas em Nicolau Maquiavel, quando teremos na figura do líder uma personagem temida.

O encerramento da edição 21 do Big Brother Brasil, a ser exibido na noite de hoje, parece pouco empolgante, todavia. Embora enriquecedora para a compreensão dos caminhos políticos escolhidos pelos brasileiros, será?

No palco de frente, para o público, está a narrativa construída em torno da personagem favorita, uma mulher branca, porém, nordestina e “sofrida”, vai ao encontro dos ordenamentos políticos de um contexto histórico falsamente meritocrático, o self-made man, ignorando todas as relações externas estabelecidas com outros participantes. Isolou-se à sua representação, ao centro.

A ideia é fomentar um líder fragilizado, porém, astuto. No caso em questão, se trata de uma advogada com uma voz um tanto embargada, que oscila entre a infantilização e o discurso cristão apaixonado em defesa do amor interior, da retidão moral, repleta de sentimentos, mas sempre atenta aos signos públicos de fácil identificação popular: músicas cantadas cujas letras reforçam sentimentos de traição, superação e solidão; ícones como um coração gesticulado pelas mãos, óculos ovalados dando um caráter inocente; um cacto como a simbologia da resistência e da força de um bioma “sofrido”.

Em segundo plano, a edição é uma das que conquistou grandes contas publicitárias em diversos segmentos da indústria: taças de cristal polido em cores sortidas ao custo de quatrocentos reais cada unidade; compras no atacado, no varejo, mercado alimentício, automobilístico, cosmético, enfim. Sucesso. Mas qual o rosto a estampar esses itens? Quanto engajamento é necessário para que milhares de votos aconteçam? Quanto mais votos mais audiência, mais engajamento e maior número de cotas publicitárias? Qual a política e a estética apropriadas para estampar essas ações em segmentos tão diversos, que vão do mais popular ao mais sofisticado?

O que nos encantaria no discurso de um político? O que nos salta os olhos e se torna importante e necessário numa decisão de compra de um item de consumo qualquer? A paixão. Essa pode ser acionada de diversos modos, mas o discurso, ou seja, as palavras e a simbologia das imagens caem como um véu sobre os corpos dos votantes, impelidos a se encantar.

No Brasil já venceram um dançarino de axé, um domador de cavalos, assessor parlamentar, babá, professor, auxiliar de enfermagem e uma médica negra, entre outros. Com exceção da última, tivemos nos homens, a predominância de um recorte racial branco, sexual e de gênero, cuja performance lhes renderia à condição do santificado. Depois dos homens, a maioria dos ganhadores foram mulheres com um recorte racial também demarcado, e com clivagens simbólicas favoráveis à identificação de um vencedor à brasileira. Não importa a durabilidade desses rostos, o importante é o sucesso garantido das publicidades para a edição do próximo ano.

Resta-nos, portanto, compreendermos que, sob a ótica da biopolítica, ou seja, das práticas disciplinares utilizadas para governar os corpos e as mentes dos indivíduos, ao menos no Brasil, é efetivo o jogo da dissimulação popular. Grupos empresariais que dominam as grandes mídias de comunicação no país, conseguem orientar um público espectador/consumidor mais que escolas e universidades. Mas, entretanto, não esqueçamos que esses grupos estão em busca somente de uma gorda fatia de cotas de mercado.

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