Departure




Com uma estética minuciosa e laboriosa com ênfase nas cores, nas afeições e nas representações visuais, Departure de Andrew Steggall se inicia com uma cena isolada de fuligens. E só compreenderei o significado desta cena quase ao final do filme que dura cerca de duas horas. Finalmente consegui assistir a este filme após dois anos de espera, e a sua primeira cena me foi surpreendente porque tenho um poema sobre fuligens, e este está a falar exatamente sobre o ocaso e as afeições.

São inúmeras as referências consagradas ao longo de toda a trama. E me senti beneficiado por todas elas, principalmente quando o filme apresenta o humano em sua nudez contemplativa e visceral, seja nas notas do piano responsáveis pela organicidade das cenas, seja nas representações da cor azul do céu refletida ora no espelho de um lago adormecido, ora nos lençóis do adolescente Elliot (Alex Lawther), ora nas representações visuais de São Sebastião, e também do Jovem Nu Sentado a Beira do Mar (1855) do pintor francês Jean-Hippolyte Flandrin, minha pintura favorita depois de algumas de Caravaggio.

E é exatamente sobre a juventude e o ocaso dela que Departure desenvolve o seu mote e nos prende atenção; é como se Andrew Steggall quisesse nos dizer que aquele jovem nu de Flandrin tem uma história, e que essa história contempla o nosso íntimo. A produção é franco-inglesa.

Uma mulher inglesa forte, Beatrice, interpretada por Juliet Stevenson, viaja com seu filho Elliot, de quinze anos, para o interior do Sul da França. O que parecia uma viagem simples de férias apresenta-se enquanto uma viagem repleta de sentidos perdidos entre o passado iminente e o futuro também iminente: ambos vão se encontrar para provocar a catarse e a irrupção.

Beatrice traz consigo uma carga emocional que salta pela sutileza dos seus gestos, da fala contida, da sensação do vazio. Elliot é a personagem mais efusiva, em primeiro instante porque a sua razão de ser é apresentada apenas para justificar o sentido dado aquela casa de veraneio, às emoções reprimidas de sua mãe, e a representação suprimida da possibilidade de um pai ausente. Segundo porque Elliot ganha forma e sentimento quando este conhece Clement (Phenix Brossard), tudo aquilo que ele não é, mas gostaria de ter, talvez pelas ausências e, ainda, pela coragem de desejar a vida.

Elliot quer ser escritor, ele fala isso ao comerciante dono do café, e repete ao amigo Clement. Todavia Clement me parece nada mais que uma projeção possível e cerceada, de um adolescente cuja família destruída pela condição econômica e pela doença, se encontra no entrelugar de onde a saída não parece viável, sequer a possibilidade do amar.

Por falar em amar, eu já discorri em outro texto a respeito do filme The Normal Heart, o quanto nossa sociedade nos ensina que meninos não amam, e não devem amar. E Clement, mesmo vivendo no campo, no interior do Sul da França, parece também ter aprendido essa lição.

As personagens principais, Elliot, Beatrice e Clement se abraçam solitárias em suas dores e ausências, porém repletas de si. Ao que me parece, nenhum deles dependem um do outro para se convergir sujeito. São autônomos em discurso e devir. Apesar de mulher, subjugada e triste, Beatrice se abraça, assim como nos representou Flandrin acerca de nossas solidões; Elliot também se abraça sob a chuva, a margem do rio ou dentro dele... Tem-se todos os elementos que reificarão a iconografia renascentista e a visão do neoclassicismos: os desenhos dos torsos, a nudez despudorada e com conteúdo ambivalente.

Elliot que parecia inicialmente representar a fraqueza e a falta, assim como a ausência da virilidade, toma para si o lugar do protagonista ao se jogar ao rio e apresentar o corpo clássico e alvo retratado por Flandrin. É neste momento que Steggall rompe com os paradigmas e faz eclodir o seu desejo pela subversão. A ordem foi rompida, e Elliot passa a existir em sua integralidade física e moral.

Os diálogos ao longo de toda a trama são permeados pela delicadeza do silêncio e das interpretações. A fotografia minimalista, detalhada seja nas representações sonoras do cantar dos pássaros, do tilintar da louça e talheres, do sopro do vento ao trepidar dos galhos, da madeira tomada pelas chamas, da água de um lago, ou das gotículas da chuva. Apesar de se tratar da estreia de Andrew Steggall no cinema mundial, Departure já está na minha lista de cinema autoral e de qualidade. É muito cedo ainda para dizer que entendo sobre a sua marca, mas acredito que a promessa se faz enquanto vida e arte.

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