Diálogo dos corpos e o desencontro das mentes


Flandrin Hippolyte (1805-1864) - Jovem nu sentado na beira do mar (1855) - Louvre

Há inúmeros anônimos vivendo sozinhos em ilhas de concreto em várias partes habitadas do planeta Terra. Esses anônimos fazem parte de um sistema que envolve atividades de trabalho, estudo, alimentação e cultura. E também sonham se relacionar uns com os outros para além das relações eventuais que exigem formalidades sociais. Eles querem transpor limites e encontrar, ainda que dentro de um ideal romântico, alguém com quem possam dividir o mais humano que ainda sobrevive dentro deles.

Há alguns anos um desses anônimos conheceu Mike, e logo de início resolveu mostrar a Mike que ele não se tratava de um indivíduo comum, desses que normalmente se encontram em clubes, boates, e que mantêm o corpo milimetricamente padronizado conforme a demanda vigente na contemporaneidade.

O anônimo, conforme os relatos presentes na música de Ivri Lider, não deseja apenas passar uma noite tórrida de sexo com aquele que seria não apenas o objeto do seu desejo. Ele gostaria de se envolver afetivamente nas entranhas e nas complexidades do ser, ainda que se tratasse de um envolvimento factual com término previsto.

Essa personagem inominada é como a personagem que também existe na música Island Song de Chris Garneau, ela é alguém que vive em uma ilha no meio de uma cidade qualquer, e não possui um cachorro, não possui uma música e também não se sente alguém especial na iminência de um encontro que se assemelhe ao final feliz de um conto de fadas.

Ivri Lider e Chris Garneau são sujeitos de seu tempo e são de origens bastante demarcadas em seus fenótipos e fazeres artístico. O primeiro é de Israel e o segundo de Nova Iorque. São homens, homossexuais, intérpretes, compositores, músicos, artistas... Eles imprimem em suas obras as agruras e as delícias dos sujeitos de seu tempo. Mas o fazem da forma mais imprevisível demandada pela genialidade artística. Os considero vanguarda por suas contínuas experimentações estéticas em suas composições e vídeos, suas militâncias transcendentes em oposição ao movimento de normatização de produtos culturais pasteurizados, e por suas expressões confluentes acerca das sensibilidades e devires das individualidades.

A personagem da composição Mike o adora. O admira por sua peculiaridade humana. Por sua capacidade de sentir aquilo que os olhos geralmente não veem. Essa personagem anônima não quer impressionar Mike, porque não é necessário que se impressione alguém para que esse alguém decida se manter presente, afagado. É como se ela dissesse que não “soubesse dançar, mas que pudesse oferecer a ele solidão com vista para o mar”, como na escrita majestosa do compositor carioca Alvin L. interpretada pela cantora Marina Lima.

Utilizando a Internet para se comunicar com Mike e com uma amiga, o anônimo enamorado mescla suas abstrações românticas de dentro do seu “apartamento perdido no meio da cidade, à espera de que tudo possa melhorar” a partir dessa nova condição de possibilidade. Ele não quer pensar nas concretudes do óbvio, nem se aconchegar no cotidiano ululante; quer mesclar às interpretações de Ella Fitzgerald às cores da sua nova emoção. Quer sentir.

Mas sua amiga o tolhe e entende que essa coisa idealizada se opõe ao pragmatismo da sobrevivência. Tudo para ela é engodo e nunca existirá o homem dos sonhos, como nos entoa a música, e que o seu amigo anônimo tanto enfeita e a faz rir por sua patética tepidez.

Rita Lee e Luiz Sérgio nos disseram em Lá Vou Eu, que “na medida do possível vai dando para se viver, e que na cidade de São Paulo, o amor é imprevisível” como nossa personagem anônima, como você que lê esse texto e o céu que se debruça por sobre todos nós.

Mas eis que a sobrevida nos confunde e fragmenta. Aponta-nos caminhos e nos cega. Porque nos faz crer que o que queremos é um corpo vazio e docilizado, ou a moda que se orquestra perante nossas janelas. E enquanto sonhamos com aquilo que nos imputam deixamos de nos sentir para que não haja sentido, apenas buscas. E nossas buscas intermináveis têm como fundamento nos oprimir em ilhas de concreto revestidas de paredes estéreis a formular espaços preenchidos de objetos inanimados.

Se ao menos a nossa personagem anônima soubesse que a alma é que estraga o amor, conforme nos deixou escrito Manuel Bandeira, e que o corpo se entende com outros corpos em seus silêncios; talvez ela evitasse intentar o diálogo de Mike. E jamais sugeriria dedilhar o piano ou lhe servir o café na manhã seguinte. E talvez pudessem desfilar a tenacidade de suas solidões, embora acompanhados.

 


Ivri Lider - Mike (Tradução)

Mike,
Como eu te disse antes
Eu não sou o tipo comum que se encontra em bares
E dizem:

“Oi, qual o seu nome?
A fim de ir para cama?”

Eu faço mais o tipo que diz:

“Hey Mike, você gostaria de passar o resto da vida comigo?
Poderia acordar ao meu lado?
E me dizer que tudo vai bem?
E depois que você sair para o trabalho, 
Eu poderia tocar piano até atravessar a tarde…”
- - - -
Conhecer pessoas é uma coisa perigosa:

Eu acho,
que o vazio que elas nos deixa,
é grande demais para ser preenchido com comida ou bebida
ou músicas fáceis feitas apenas para abstrair a mente

Mike,
Agora são nove horas, e eu só preciso esperar até às quatro,
antes de poder ligar para você.

Os segundos antes de você atender machucam...
Aliás, são torturantes.
Não é nada divertido,
Mas confesso ser viciado nessa coisa do “porvir”:

“Um dia ele vai chegar, o homem que eu amo.
E ele será o que eu quero,
O homem que eu amo”.

Mike? Você está ai?
Você dormiu bem?
Como se sente sendo tão bom assim?

Refrão:

Garrafas de uísque vazias preenchem o quarto
E a minha cabeça voa longe,
E eu não quero acreditar que isso possa ser errado.

Garrafas de uísque vazias abarrotam o quarto,
Quando desperto,
Você podia me beijar a mão e fazer tudo isso passar?

Eu o avisei, garoto,
Você sempre quer aquilo que você não pode ter.

“Um dia ele vai vir… Blá blá blá…”
Você é engraçado,
Você simplesmente me faz rir,
Patético!

“Um dia ele vai chegar,
O homem que eu amo, (Mike?)
E ele vai ser o que eu quero, (Você está ai?)”

- Você dormiu bem?
Como se sente em relação a isso?
Eu gostaria de ser daquele tipo comum...
Eu gostaria de ser o seu tipo... Eu desejaria ser…

Refrão:

Garrafas de uísque vazias preenchem o quarto
E a minha mente voa distante,
E eu não gostaria de dizer que isso foi um engano.


Garrafas de uísque vazias completam o quarto,
Quando desperto,
Você pode me ouvir quando canto?
Você pode beijar a minha mão e mudar a página?
-----------------

E se eu disser que eu não sou como os outros?
E se eu disser que não sou apenas mais um de seus brinquedos?
Você é falso!
E se eu disser que nunca mudarei? 

(Tradução livre por Túlio Henrique Pereira)

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