A memória do corpo
Fotografia de Paulo Carvalho |
Cheguei à conclusão de que sou quase débil. O transcurso entre o bom-gosto e a insensatez perpassa meu senso mais ambivalente em relação ao caminho norteado em torno do que sou. Quando eu era criança, em uma fase deste período, eu me lembro que eu brincava muito, e brincava com coisas sérias demais para uma criança da minha idade. Eu fazia bonecos com caroço de manga, sabugo de milho, folhas de mandioca e até com galhos de boldo.
Havia uma criatividade que transpunha os limites do meu corpo, até alcançar o lugar mais chamejante da aura daquela criança translúcida. Tudo atravessava o meu ser, a luz do sol, o vento, as nuvens, o arco-íris, a poeira vermelha, o aroma sutil da espatódea plantada na calçada larga da casinha do vovô... O limiar exausto entre bênçãos e a maldição de estar ali promitente.
Em minhas brincadeiras de criança eu inventava estórias. Estórias que se confundiam com o que eu sentia e a dor que a vizinha sofrera por ter sido violentada pelo marido, dependente químico. Eu era um menino magricelo, com uma cabecinha oval, cabelos crespos, os olhinhos puxados de íris amarronzada. Vivia de pés descalços acreditando que o universo fosse o lugar por onde eu já estivesse passado. Indiferente. Noutro plano, mas que naquele momento devia conhecer o limite do estar.
Representar os fatos era mais atraente que jogar futebol. Analisar os pesares sempre me pareceu mais excitante que empurrar carrinhos. Eu era débil para a minha idade. Eu era. E sofria uma inércia com variações lisérgicas bem profundas.
Eu dançava ao vento, eu cantava alto, eu olhava o mundo. Eu existia nele de modo tão conclusivo, que nem mesmo a memória alcança a sobriedade daqueles dias. Eu era delicado, e já sabia que o pensar habitava mais denso de significados, que o ato da fala. Eu sentia as cores, eu as colhia, eu as comia e deduzia seus verbos. Como quem sabia viver o presente tendo a certeza de que o futuro o tornaria brando e, inexoravelmente, vivo.
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