O Sorveteiro do Largo na Casa dos Espelhos - Parte I (Da série amor afrocentrado)


La Barbier Nègre à Suèz (1876) - Léon Bonnat
(Galleries Curtis, Minneapolis, Minnesota)


Leandro trabalhava pesado na sorveteria do Largo desde os doze anos. Perdia os olhos no reflexo de vozes que invadiam os ouvidos, no entra e sai de clientes apressados dentro dos seus dias corridos e importantes. Ele via na bancada de alumínio um espelho descentrado com o fragmento das almas das pessoas ilustres na direção da vida.

Em meio aquele arco-íris de sons, o silêncio fúnebre e escurecido, Leandro não parecia tranquilo naquela tarde de maio, pleno domingo de calor e movimento. Foi quando avistou ao longe a forma de um sentimento que lhe arrebentava o peito, estatelando o coração a empurrar o ar prensado nos pulmões.

O mês de julho arrastou-se lento e desalinhado. Naqueles dias, Leandro gostaria mesmo era de estar na escola a concluir o seu segundo grau e a saborear as férias entre semestres. Ele havia parado de estudar há três anos, quando o senhor Gervásio não o permitiu manter-se no trabalho por meio período. Se quisesse ser promovido à atendente haveria de ser dedicado; era somente dele a escolha: o dinheiro ou a escola. Depois disso, apenas o braço com o apoio das mãos sustentavam aquela cabeça abarrotada de sonhos possíveis.

No dia do mês em que se organizava a faxina, o estoque era reservado aos fundos, o atendimento era restrito aos itens dos armários e geladeiras no salão. E descalço, com os pezinhos negros enrugados com a abundância da água e do detergente, Leandro empurrava a sujeira com o rodo a observar o seu reflexo escuro e transfigurado por sobre a lâmina aquosa por entre a espuma. O piso de granito acinzentado recobria suas ilusões estanques, ainda que pisasse sobre ele, sentia-se parte daquele pedaço de rocha em grânulos.

Com o cabo do rodo em mãos, Leandro se virou para a porta entreaberta e recostou-se na pilastra a sustentar os andares de cima do prédio. O reflexo turvo de fragmentos possíveis denunciava a presença aturdida de um homem negro com barba cheia, vestido em seda azul marinho; o mesmo que um dia inspirou-lhe a vida naquela tarde de maio em que os sons criavam arco-íris refletidos no alumínio do balcão da loja. O timbre grave ressoava uníssono com as palpitantes aceleradas do seu peito. O homem perguntou a ele a respeito dos sorvetes com o sabor da fruta-do-conde. Leandro mal respirava em pausa, e deixou que o moço seguisse sem resposta.

Havia de ter dito algo - pensou depois do seu regresso. Saiu sem que se atinasse do intento. Era cliente recente, pouco assíduo. Um novo professor universitário da cidade... O senhor Gervásio cutucou-lhe a cintura e pediu a Leandro agilidade. Leandro devia acordar do sonho afrocentrado e não mais se enxergar refletido. Haveria de ser dedicado ao ofício, rapar a água e secar o piso. Outra vez acordado se percebeu imóvel sobre aquele pedaço granulado de rocha.

Comentários

Adsummam disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Adsummam disse…
Obrigado, amigo, por mais uma vez, presentear-nos com sua sensibilidade. Jamais deixarei de ler suas narrativas, suas apuradas descrições. Forte abraço.