Lançamento do livro "Pele e sensibilidades: práticas de memórias e identidades do negro na literatura (1909-1940)"

Antes dos meus sete anos de idade, quando ainda não frequentava a escola, eu não sabia o que era ser negro, mas tinha noções múltiplas de como o negro era visto e representado popularmente nos discursos comuns e a partir de imagens da televisão. Quando sai de São Paulo para voltar à vida e, de fato, estudar em Goiás, tive o primeiro contato com aquilo que entenderia por raça, distinguido pelas cinco representações estéticas da pele e do fenótipo do ser humano, esquema elaborado no livro didático da escola primária, no qual eram apresentados como raça os sujeitos de pele branca, negra, amarela e vermelha.

Os brancos eram representados pelos portugueses e descritos como aqueles que vieram para colonizar, morar, cultivar a terra, sendo eles responsáveis pela criação de povoados, vilas e cidades, construção dos engenhos para a produção do açúcar e produção de subsistência e, também, responsá­veis pelo ensino dos bons costumes religiosos por meio da catequização dos índios e negros.

Os índios, ou seja, os nativos que viviam na terra denominada Ilha de Vera Cruz, depois Terra de Santa Cruz – nomes atribuídos ao Brasil pelos portugueses antes da colonização -, eram repre­sentados no livro didático como selvagens nômades, que viviam da caça e da pesca, mas que não se submetiam ao trabalho nas lavouras e, por isso, se mudavam sempre quando houvesse escassez de alimentos onde estavam instalados.

Os negros eram ilustrados nos livros como seres presos com correntes no pescoço, bra­ços e pernas, sendo considerados os escravos que vieram da África para o trabalho nos engenhos. E foi nesse percurso narrativo, e aparentemente ingênuo, que a escravidão foi tida como sendo de extrema necessidade, pois os engenhos demandavam força e quantidade demasiada de pessoas para a grande produção.

Das classificações gerais encontradas nas páginas do livro didático, tem-se o branco, negro, amarelo e vermelho, e dessas surgiram as denominações estereotipadas do amarelo como o sábio milenar de origem oriental, o mulato resultante da mistura entre o branco e o negro e o cafuzo a mis­tura entre o índio e o negro.

Confesso não ter sido no livro de Borges Hermida (1958) que estudei em meus primeiros anos de escola, pois me lembro que precisávamos devolvê-los ao final de cada aula, já que se tratava de uma escola pública. Quando vi o livro desse autor, ainda criança, tratei de guardá-lo, o motivo eu não sabia na época, mas estava bem longe de saber que um dia me seria útil.

A partir dessas imagens e leituras, comecei a perceber que ser negro era pertencer a uma es­tética e a uma ideia comportamental com um passado humilhante, fraco e culturalmente irrelevante. A cultura negra, desenhada naquele contexto, se limitava ao jogo da capoeira, que “o escravo ensinou ao branco, a luta que no Brasil virou dança”; somada ao ato de ritualizar magias, consideradas pagãs, frequentar terreiros de candomblé, ser viril ao mesmo passo que malicioso, rude e cognitivamente limitado para atividades que não se relacionassem ao labor físico.

Não tive uma relação direta de negação à minha condição física, social e cultural, apenas não conseguia estabelecer um elo entre o que continuamente era apresentado pela escola com o que rotineiramente vivenciava dentro da minha casa, com a minha família, alheia à qualquer uma das conceitualizações propostas pelo livro.

Todas as atitudes públicas, performáticas, ou ordenadamente acordadas popularmente, resul­taram num certo apagamento do sujeito negro da minha realidade. Na maioria das vezes, era possível perceber esse sujeito sendo tratado de forma genérica e requisitado por sua estética entendida como feia, suja, amoral e subserviente.

Por outro lado, o sujeito possuidor de outro fenótipo tinha o nome reconhecido, a profissão e ou­tras adjetivações qualitativas lhes eram dirigidas, além, é claro, de ter sempre estampada a imagem de rei/rainha, herói/heroína ou príncipe/princesa, salvando-se alguns casos em que esses heróis possuíam características consideradas curiosas, como no caso da estatura física pequena de Napoleão Bonaparte e do rei francês Luís XV, ou mesmo da obesidade do rei D. João VI; imaginário que reitera a afirmação do geógrafo Milton Santos (1926-2001) em entrevista à revista Caros Amigos ao dizer que, “Quando se é negro, é evidentemente que não se pode ser outra coisa [...] porque a questão central é a humilhação cotidiana”. Diga-se a humilhação das correntes que o identificam como o escravo e o generalizam como tal, do cabelo considerado “ruim”, por ser crespo, e da pobreza relativizada pela preguiça ou falta de interesse pelo desenvolvimento dignificante do ser civilizado.


Muitos desses conceitos e sua difusão contribuíram, ao longo de gerações, como um suporte material no processo de construção da identidade humana e de seus grupos sociais, visando englobá-los, por assimilações; fenômeno em que os grupos sociais se reconhecem a partir de sua relação com o meio e seus pares. Cada um em busca da imagem que evidencie o seu imaginário de coletividade, determinado por acordos, ao passo que esses sujeitos se encontram nas referências que os legitimam como sujeitos e os incorporam intermediados pelas semelhanças visadas por cada um.


Mais tarde aprendi, dentro da minha própria casa, que o que via e lia naquele livro de Borges Hermida (1958), na escola, era o reflexo de um pensamento generalizado. Por isso mesmo minha linda mamãe negra, quando criança, usava prendedores de roupas para impedir que o nariz negróide se apresentas­se livre denunciando sua estética. E percebi que a minha tia alisava seus longos cabelos cacheados para que pudesse se apresentar linda no baile do final de semana. Como ainda era jovenzinho não fa­lava nada, deixava que meus olhos percorressem a felicidade de suas faces e a alegria de seus corpos nos atos dos ajustes.


Imagino que, à medida que fui crescendo, descobri que minha prima inteligente não era tão bonita aos olhos dos meninos da rua quanto a vizinha. E que tudo isso estava ligado ao fato de nossa vizinha ser loura e minha prima ser negra.

Passei a não gostar da Xuxa, primeiro, porque ela tomava café da manhã de um jeito desde­nhoso em uma mesa cheia de frutas, doces e pães. Ela apenas mordiscava o melão e pedia para que retirassem a mesa. A Xuxa e toda a produção do seu programa matinal estavam alheios à realidade de crianças como eu. Eles não sabiam que os dias com pão e leite na casinha do meu avô eram raros.


O segundo motivo para odiá-la foi o fato de todos a acharem bonita por ser loura, ter os den­tes alinhados e os olhos azuis. Suas características físicas eram tomadas como sinônimo de beleza, dignidade e bondade. E, desse modo, seus espectadores adotaram o padrão Xuxa de beleza e com­portamento.


O sucesso da Xuxa com as crianças e as famílias despertou em muitas garotas, incluindo minha prima, o desejo de ser como ela, mas, no entanto, só existia uma. Assim, para a felicidade da maioria das meninas, decidiram instituir as ajudantes de palco para a rainha dos baixinhos, no en­tanto, o pré-requisito para se tornar uma auxiliar da Xuxa, ou seja, uma Paquita, era que a candidata tivesse o mesmo fenótipo da rainha, e mais, que essa fosse loura ao natural.


Se o fato de ser louro, ter olhos azuis e dentes alinhados em um sorriso descomunal era si­nônimo de beleza e bondade; considerar que, todos lá em casa éramos feios e ilegítimos em nossa condição de cidadania, foi o mais cabível pensamento a se instaurar em minha mente.


A historicidade das memórias, que circundam as identidades negras, se tornou para mim a porta de entrada para um mundo de representações interligadas por laços de valores sociais. Imagens e representações que, firmadas no espaço humano, partindo de demarcações socioculturais, econômi­cas, políticas e étnicas, acumularam múltiplos sentidos. Não obstantes negativas, deixaram marcas e valores difusos, embora catárticos. Compreender o processo de construção desses sentidos atribuídos à razão, e às sensibilidades humanas, permitiu-me captar o fiel sentido de que muitos negros homens, mulheres, crianças, e uma infinidade de sujeitos subjugados por seus fenótipos ou identidades corpo­rais, sofreram e continuam a sofrer no limiar de suas sobrevivências, demarcados em um simulacro da memória, no jogo entre o real e inverossímeis narrativas sobre mentalidades.


Por fim, foi assim que cresci, estudei, me tornei adolescente e depois adulto. Foram essas as referências que me trouxeram aqui, referências experienciadas cotidianamente. Pontuando fenôme­nos que me silenciaram, silenciando a todos aqueles que se assemelhavam aos meus entes pela sim­ples razão do matiz da pele ou da memória de escravização do corpo negro. E por mais que Foucault (2005) nos lembre sempiternamente de que toda a vontade de poder seja vontade de poder e, embora eu tivesse tudo para endossar o imaginário popular a que a maioria dos livros didáticos, programas de televisão e músicas tinham sobre as pessoas com a cor da minha pele, preferi contrariá-las natu­ralmente, e buscar, mesmo em um terreno incipiente, referências que foram opacizadas. Para assim compor o invólucro dos belos tons da minha cor substantivada pelas subjetividades em que incorro, ainda que se trate de uma vontade e, mesmo que seja de poder.

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