Homofobia molícies e a recusa da afetividade entre os homens

Cena de The Normal Heart com Ned e Felix

Prometi a mim mesmo que quando chegasse ao doutorado eu estudaria como nunca antes me fora possível. Não iria trabalhar em projetos paralelos, não me abstrair com cinema, música ou finais de semana ociosos entre leitura paralela de literatura, e todo o resto das coisas que me fascinam o espírito, assim como o amor.

Confesso que consegui me controlar por muito tempo, e que nos últimos meses, mesmo embora tendo prometido não acessar redes sociais, acabei rompendo com meu trato e cá estou redigindo uma nova postagem. É que descobri uma coisa e decidi assumir: sou feito de carne, osso e sensibilidades. E como havia dito em um fragmento de ideia tempos atrás: - minha alma foi feita especialmente para sentir.

Não tenho me gastado muito para além da dedicação com a escrita da tese. Ainda intercalo essa função com outros estudos, com a audição de um sonzinho aqui, um livro de literatura acolá, um cineminha... E minhas eternas reflexões sobre o amor.

E são sobre essas minhas idealizações a respeito do amor de que preciso falar. Sim, antes que qualquer cético, racionalista, existencialista ou niilista me julgue, saliento que também corroboro com a ideia de que o amor se trata de uma construção. Então, já que ele foi construído, eu decido sobre o seu poder acometendo a minha mente, efervescendo meu sangue e me enchendo o peito de esperanças. Afinal de contas, não vejo razão melhor para ter vindo à vida senão à possibilidade de amar.

Mas não falo tão somente do amor relacional dos amantes, aquele amor romântico que me pululam os olhos e faz você se lembrar de que tem um estômago. Falo da amplitude de gostar e ter esperanças para com o humano e tudo que provém dele, até mesmo o caos.

Nessas últimas semanas assisti a três filmes que me fizeram pensar muito sobre as ideias que tenho sobre o amor: Alaska Is a Drag (EUA, 2012), Forsaken (EUA, 1994) e The Normal Heart (EUA, 2014).

O primeiro se trata de um curta-metragem estadunidense chamado Alaska Is a Drag, de novembro de 2012 que, ainda vai estrear esse ano como parte integrante da coletânea Boys On Film, organizada no Reino Unido em DVD como iniciativa de difusão das questões em torno da sexualidade e afetividade no universo homossexual.

Alaska Is a Drag conta a história de Leo, um jovem negro e afeminado que vive no Alaska e trabalha numa peixaria, mas sonha em ser uma superfamosa drag-queen. Certo dia, quando enfrentava mais uma jornada no trabalho de limpeza e armazenamento dos peixes, Leo se depara com a chegada do sensível Declan, um jovem branco que sai do interior para juntar dinheiro e conseguir viajar para fora dos limites opressores do Alaska.

Leo sofre com os constantes ataques homofóbicos de Kyle, um jovem branco companheiro de trabalho cuja namorada está grávida. Kyle sente necessidade de lutar corporalmente com Leo que sabe sobre truques de luta através dos filmes exibidos pela televisão.

Kyle emboscava Leo sempre ao término do expediente ou nos intervalos. É notável no curta a necessidade de Kyle de tocar o corpo de Leo, ainda que de forma violenta, de modo a não representar uma legitima afeição requisitada pelo rapaz intolerante. Kyle também quer toda atenção de Leo, e não aceita dividi-la com o novato Declan.

Há uma conexão natural estabelecida entre a sensibilidade ativa de Declan e a suavidade adormecida de Leo. Adormecida pela constante necessidade de se mostrar forte e autossuficiente diante das opressões sobre sua condição homossexual, sua feminilidade e, quem sabe, também, sua negritude.

Cena de Alaska Is a Drag com Declan e Leo

Declan tem características mais aceitáveis, é branco, não afeminado, e, por isso, externaliza sua sensibilidade sem parecer se preocupar com os jugos externos. Mas acontece que Declan parece se encantar por Leo, o convida para sair, dialogam sozinhos sobre o píer nos intervalos e há até um olhar de vislumbre nos olhinhos marejados de Declan ao admirar a profusão dos sonhos narrados por Leo.

No segundo filme Forseken, um curta-metragem estadunidense de 1994, lançado na Holanda em dezembro de 2003, há a narração das memórias de um jovem rapaz moreno chamado Jonathan e seus sentimentos conturbados atravessados pela ideia de amparo do sacerdócio e a afeição desamparada sentida por seu amigo David, jovem louro jogador de beisebol.

O filme é de produção simples e se mescla em tomadas sobre o presente do velho padre Jonathan e ao passado das memórias de sua renúncia do amor belo e efervescente da mocidade torneada no corpo de David. Vale, inclusive, atenção a inserção inicial de um versículo retirado de Mateus 27: 46, em que diz: “Meu Deus, por que me abandonaste?”, versículo em alusão ao título sobre o abandono ou o desamparo Cristão.

Idosos, David e Jonathan nunca deixaram de manter contato ainda que com longos intervalos. David nunca deixou de atender aos pedidos do velho padre agora amigo, um dia no passado seu afeto.

Acontece que Jonathan precisava ser amparado aos olhos do mundo que lhe foi dado por Deus, mas que lhe fora negado pelos homens. E o menino que se deixou atravessar pelo instante da moral viu-se entrecortado pela distância provocada pela impossibilidade de experimentar uma das dádivas para sua vida: amar.

O terceiro filme, longa metragem estadunidense feito para televisão, The Normal Heart, lançado pela HBO norte-americana em maio de 2014 (o filme já está em exibição na HBO Brasil, e será exibido ao longo dos dias 15, 18, 19, 20, 22, 27, 28 de junho e também em todo mês de julho de 2014), traz em seu enredo as tensões provocadas pelos fatos ocorridos desde o início da década de 1981, que acometeram a cena gay com o surgimento da AIDS até sua efetiva pesquisa em 1985, quando gerou transformações significativas no comportamento sexual livre de homens homossexuais acometidos em grande número por mortes em decorrência das complicações provocadas pelo HIV, e também acusados de disseminar o então apelidado “câncer gay”.

O filme recheado de boas e exageradas atuações, sendo destaque a minha eterna prettywoman Julia Roberts, que encarna a médica Emma Brookner, o talentosíssimo Jim Parsons, que dá vida à personagem Tommy Boatwright, o Mark Ruffalo como o fortíssimo, emocional e apaixonante Ned Weeks, e o supersensível Felix Turner, interpretado por Matt Bomer.

Com cenas que reproduzem o contexto da época de liberdade sexual, consumo abusivo de drogas lícitas e ilícitas, saunas, poligamia, orgias e toda possibilidade de prazer sem limites, ciúme, compromisso e controle, e apesar de clivar essa liberdade e tratar da AIDS nesse contexto - um tema atualmente quase esquecido pela jovem cena gay que negligencia o uso de proteção em suas relações sexuais livres -, o filme também trata das relações demarcadas pela afetividade intencionada de humanidade.

Não estou dizendo que condeno a poligamia ou atividades múltiplas de sexo entre pessoas como práticas desprovidas de humanidade e afetividade. Eu as reconheço em sua legitimidade de afirmação do Eu no exercício de sua potencialidade humana e de sua liberdade, e por isso consigo decidir pela não escolha dessas práticas liberais enquanto um desejo em favor das minhas ideias em prol da construção das sensibilidades menos machistas entre meninos.

Enfim, voltando ao amor, pois é a parte que mais me satisfaz. De modo paralelo e entrecruzado The Normal Heart narra sobre a epidemia da AIDS, o preconceito da doença, sobre a morte, e também sobre o amor. O amor pela vida que fez com que a médica Emma Brookner vencesse o vírus da poliomielite e concluísse seus estudos em medicina, embora deixasse como sequela a paralisia dos membros inferiores e o amargor em decorrência dos preconceitos que ela experimentou durante sua vida de cadeirante. Mesmo se tornando uma mulher dura e autossuficiente (exceto pela paralisia), incapaz de despertar o amor de um homem (o filme explora essa questão de modo sutil), a médica Emma Brookner foi capaz de amar não apenas um, mas vários homens negligenciados pela sociedade nova-iorquina da década de 1981, incapaz de abraçá-los, tanto por suas condições sexuais quanto pela enfermidade que os acometia.

O filme fala do entusiasmo de Felix Turner, um jornalista da Time, que se apaixonou por Ned Weeks em uma sauna gay. Weeks, que em seu primeiro encontro com Felix o trata apenas como um corpo a satisfazer a sua necessidade de alívio sexual, não conseguia ser sensível o suficiente para enxergar que o seu ato de aliviar-se se dava em parceria de um sujeito repleto de sensibilidades e clivado pelos mesmos códigos e laços que ele, tais como família, trabalho, sonhos e desejos.

O reencontro dos dois se deu apenas anos depois, quando Weeks buscava apoio para a luta em prol de donativos para se pesquisar sobre a doença a exterminar gays.

Weeks e Turner conseguiram desvelar a razão de suas sensibilidades e puderam se amar, ainda que fosse um pouco tarde para dar vazão à possibilidade de um para sempre, ou quem sabe um amor longevo. Mas o “para sempre” que os amantes muito gostam de anunciar em suas juras de amor já não podia mais acontecer, pois Felix, desamparado da recíproca de Ned, havia se exposto à condição liberal da não legitimidade do amor monogâmico entre iguais. E por isso se contagiou. Ele talvez tenha se contagiado porque nem todo menino ama. Porque a homossexualidade é a margem e o rompimento da norma enquadrada pela idealização de um amor heterossexual incorruptível, embora ruído de hipocrisia e desfaçatez. Enfim, aos meninos gays ainda é proibido o amor, porque esses enquanto homens devem seguir o pior exemplo do machismo construído e mantido ao longo de gerações por seus progenitores machistas em defesa da insensibilidade masculina.

O que trago do exemplo dos três filmes que assisti é que me parece que ambos abordam a mesma questão complexa das relações que envolvem meninos: a recusa do afeto entre os homens. É como se socialmente fosse mais natural que Kyle se mantivesse dando pontapés e medindo forças com Leo, que também é um menino, do que Leo aceitar um convite para jantar com Declan.

A naturalidade do abandono de Si protagonizado por Jonathan ao se render ao sacerdócio como uma fuga do possível desamparo de sua afeição é de cortar o coração, porque ele e David nunca deixaram de se quererem próximos. E assim o fizeram, embora amputados de braços que pudessem abraçar.

O gozo descompromissado e sem expectativas de Weeks dentro do corpo de Turner numa sauna, remete à cena da masturbação de um adolescente qualquer ao expelir jatos de sêmen na latrina antisséptica do banheiro sob a vigilância dos seus pais, do lado de fora, sentados no sofá da sala ao assistirem televisão.

No final do filme Felix Turner e Ned Weeks parecem ser os porta-vozes de todos os meninos interditados de amor. Com suas vozes embargadas eles imputam em nossos ouvidos a afirmativa de que “Homens não deixam de amar naturalmente, eles aprendem isso. Imagina se não tivéssemos sido covardes quando éramos jovens. Se não tivéssemos medo ou vergonha”.

Sim, talvez, se não continuarmos tendo medo de sentir afeição, um dia, quem sabe, todos os meninos possam ter o direito de amar.

Abaixo o vídeo do curta-metragem Forsaken:

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