Lugar Incomum


Representação da mulher branca, média e ocidental na década de 1950

A elevadíssima razão havia saído do escopo da sua lânguida afirmação interior de que todos os homens eram iguais. Roberto não era um homem. Ao menos não um qualquer, comum aos demais que Virgínia insistentemente questionava ao lhes oferecer o lugar de Adãos. Mente guiada pela teoria criacionista, ela fora casada por oito meses com Diogo, a quem flagrou aos beijos com a irmã durante um jantar domingueiro na casa de seus familiares. E aquilo que, para ela, inicialmente, parecia ser nada mais que um flerte incandescido, tornou-se casamento frutificado e sólido. Agora, Virgínia era cunhada de seu ex-marido Diogo, com quem, incrivelmente, estabeleceu forte amizade recíproca.

Ela conheceu Roberto durante os dias de Carnaval dedicados ao descanso na pacata Pirenópolis de Goiás. Durante os anos anteriores, havia estado em festas no mesmo período, mesmo quando casada com Diogo - o homem tinha um fogo inapagável, lugar comum de todos os outros dos quais a psicóloga social, especializada em comportamento masculino, analisava.

Meigo. Portanto não foi esse o atrativo que despertou seus olhos para ele. Sua atenção se deu ao dorso másculo, os ralos pelos debruçados sobre o peitoral e abdômen, e quando o observou descamisado não conseguia esquivar-se do caminho trilhado pelos pelinhos pubianos indicando o local do paraíso a se esconder por dentro das bermudas de linho. Ela não teve dúvidas de que aquele era o homem. O cumprimentou durante o almoço na pousada. Afinal de contas, tudo favorecia aproximações, e ela, mulher crescida e não doutrinada ao papel de dona de casa, se propunha ao lugar da caçadora: “com todo o direito”, falava para si mesma a cada par de minutos a trepidar-se ao se perceber inadequada.

- Boa tarde!

- Boa.

O homem tinha a macheza até no falar objetivo e sintético. Ela sorriu, e levou com a mão direita os cabelos para detrás da orelha. Após servir-se de salada e juntos darem alguns passos insistiu:

- Também está fugindo da loucura do Carnaval?

- Sim.

Sorriram e decidiram almoçar juntos, embora ele tenha se mostrado resistente como ela pensou no primeiro instante. Mas logo em seguida se sentaram acompanhando-se, e decidiram sorrir soltos conversando sobre o mito de que na cidade de Pirenópolis havia a incidência de óvnis e extraterrestres.

O lugar mítico os consumia de tal modo que a conversa se estendera a uma sessão noturna, durante a qual pontuaram que muitos pesquisadores e amantes dos ETs se reuniam para discutir os assuntos relacionados às invasões, abduções, energizações e espiritualidade.

 Vistas parciais urbana e dos parques naturais da cidade de Pirenópolis, Goiás


42 anos e nenhum filho, graduada, pós-graduada, divorciada. Tudo o que Virgínia fizera, até então, fora questionar os lugares e a ordem determinada às pessoas que compunham tais espaços no planeta. Fugiu do fogão ainda quando menina, e nunca, mesmo que se esforçasse, se lembrava do dia em que perdeu o tempo lavando ou secando louças. Mais que feminista, Virgínia era a síntese da vontade do não ser. Para alguns ela tinha fortes tendências homossexuais, para outros tudo não passava de misoginia invertida. E havia aqueles que acreditavam piamente que o que lhe faltara era um bom chá de macho para lhe acalmar os nervos. Ela se interava de todas as impressões que tinham ao seu respeito, não que fosse onipresente, mas sim, por ter uma mãe ativa e integrada, não apenas a extensa família, mas a toda a vizinhança do bairro onde morava desde a época de seus avôs.

Um homem saberia caminhar com os pés no chão, enquanto uma mulher podia transcender espaços e observá-lo ao longe, apenas com a certeza dos olhos: “Roberto.”, “Virgínia!?” - Assim, ao longo daquele dia e de outros, acabaram se conhecendo socialmente. Ela logo se lembrou de Gerard Lebrun “paixão é sinônimo de tendência” e incorreu a sua obviedade analítica erigindo-lhe à distância. Pensou capciosamente ser algo próprio de seu ego encerrar-se em si mesma, podendo por si escolher entre a possibilidade de se manter diante do porvir que se instaurava e a moção elevada de sua tese.

- Está tudo bem contigo?

Ele a notara ambivalente. Flutuando na aura daquela amplitude e restrição à força estonteante daquele macho. Mas ela era fêmea, porém não o queria submissa, não como os acordos comuns determinavam, não o santificando em certa superioridade digna de sua genética.

- Por que tudo há que ser assim?

- Assim como?

- Previsível.

- Mas previsível como? Ele insistiu como quem entendesse o que ela pensava com os olhos perdidos no horizonte de verdes e montes rochosos. Era uma assertiva imaginar que ela pensava sobre os gêneros e suas posições flutuantes. No entanto, ela nunca verbalizaria “não se estivesse interessada”, pensou.

- Homem e mulher... Bom e mau... Feio e bonito... Gordo e magro.

Havia de ser como ela queria. E ele, atento a ela, permitiu concluir sem que pudesse ouvir-lhe à réplica. Podia ser que houvesse uma beleza ali ou tudo fosse nada além de criatividade com direito a bons aromas e raios de sol repousando leves sobre suas peles enrubescidas. Tudo contra ela, levando-a insistentemente à condição uníssona e essencialmente suscetível à receptividade da forma. Recordou de Platão e se lembrou que dos homens, nenhum deles, por maior quantidade possível escolheria as paixões para a legitimidade de sua existência.

Desperta e o olha nos olhos com o saber de quem ficara por detrás de espelhos observando-se ao se esconder do outro. Ela sabia na carne que ele não seria, então, responsável por sua paixão, mas somente por como a fizera se submeter à sua ação.

Na manhã seguinte, Roberto despertou cansado, embora com certa sensação de relaxamento físico. As cortinas flutuavam com os ares invadindo seus aposentos. Dia claro. Pássaros cantando e o tilintar das louças ressoando da cozinha. Levantou-se esfregando os olhos e, sem nenhuma peça de roupa a tampar-lhe a pele, caminhou em direção ao barulho. Virgínia em pé de frente para a pia virou-se sorridente para vê-lo a sua espreita. Com a louça e a esponja nas mãos, vestida com avental e a camisa de seda do amante, decidiu ali mesmo que a alma era nada além que a ideia do corpo, e, portanto, decidida a compreender os afetos, pôs-se a alcançar sua origem em liberdade de tudo que lhe aprisionava. Sentiu-se na luz, distante da cegueira de sua própria caverna cavada por seu ethos.

Roberto por sua vez não compreendia o que via. Abarcou a profusão ríspida de terem se amado na noite passada, nada além disso. Não versejava a razão tangível de vê-la sorrindo ao lhe servir. Estático. Era como se o riso o contemplasse internamente e a súbita grosseria de seu pathos o mantivesse alheio a qualquer sensação de deleite para com ela. Sem dúvida, ela não era quem ele pensou que fosse, e mais uma vez se enganou na eterna busca pela diferença.

Virgínia conheceu Roberto durante os dias de Carnaval dedicados ao descanso na pacata Pirenópolis de Goiás. Meigo. Portanto não era esse o atrativo que despertou seus olhos para ele. Sua atenção se deu ao dorso másculo, os ralos pelos debruçados sobre o peitoral e abdômen, e quando o observou descamisado não conseguia esquivar-se do caminho trilhado pelos pelinhos pubianos indicando o local do paraíso a se esconder por dentro das bermudas de linho. Ela não teve dúvidas de que aquele era o homem. Virgínia conheceu Roberto durante os dias de Carna... Virgínia conheceu Roberto durante... Viríginia conheceu Roberto... de fronte para ela. Ele se mantinha o homem em carne, osso e pose a rejeitar sua investida durante o almoço na pousada. Senão em sua totalidade, se mostrava como alguns homens extraordinariamente bonitos que valem o equivalente à sua beleza em insipidez.

Ela se mostrou mulher com corpo e alma de mulher. Mais agora do que antes, pois havia catarticamente se libertado depois de se mostrar fora do mito das exceções, ela resvala para si mesma em descontentamento e perda: “a alma foi feita para sentir”.

Comentários