Quando perdido dentro de um dia de domingo

Hoje aconteceram umas coisas engraçadas comigo. Antes de acordar eu sonhei que vivia em um sítio dentro de uma tapera coberta de verde, que andava com os pés descalços e comprava doze reais de leite fresco todos os dias pela manhã. Depois fui almoçar com meu amigo. Um restaurante no centro da cidade de Uberlândia, MG, que não visitava desde os meus 22 anos.

De repente ao notar que havia mudanças no ambiente, mesas lotadas com famílias com crianças e adolescentes, filosofei com o amigo que me acompanhava sobre as diferentes faltas que nos acometem. Dei o exemplo violento e sem afeto de seu pai e falei sobre o fato de não saber quase nada sobre essa minha outra parte biológica perdida em qualquer espaço desse planeta.

Foi quando ele me questionou como constava a descrição da paternidade no meu documento de identidade. Então respondi que não constava, e continuei dizendo que aparecia a filiação com o nome da minha mãe e que em alguns casos apareciam traçados ou asteriscos no lugar destinado a filiação paterna. Ele perguntou se já fui atrás de saber sobre ele e onde morava, e eu o respondi que sim, quando criança, e que a mãe dele e meus irmãos tortos moravam em Uberlândia. E respondi que não tinha mais o desejo de procurar por essa minha avó, porque hoje eu poderia ter trinta anos, mas que antes eu fui uma criança, embora eles não tivessem interesse em me procurar.

Fiquei pensando sobre a ausência, as limitações e as possibilidades. Tomei suco de melancia bem adocicado com gelo e acredito que pude sentir o sabor da infância me invadir os olhos que quase lacrimejaram. Os contive. Comi doce e me lembrei que o vazio atravessa a todos, que não sou vítima, que poderia ser o filho desse homem ou ser o filho da minha mãe, ou ser o filho daquele casal que me perceberam comer pudim de leite na sobremesa. O pai malhadão, a mãe com cara de analista de RH, o filho com aspecto nerd louco para comer lasanha, e a filha adolescente de óculos com grau forte tentando se infartar com um prato cheio de rúcula... Eles almoçavam juntos e muitas vezes sorriam bastante.

Nunca almocei assim, pensei.

Aos meus oito anos de idade minha mãe trabalhava para garantir o meu sustento, e sozinho em casa eu aprendi a lavar a louça, tomar café da manhã, fazer as tarefas da escola, esquentar o almoço, tomar banho, me aprontar e seguir para a escola. Não havia moedas nem lancheira com frutas todos os dias, mas, às vezes, acontecia de ter.

Questionei-me como eu seria se eu não cumprisse as obrigações que me foram delegadas naquele tempo de ausências, mas de cumplicidade. Questionei-me sobre o cotidiano daquela família na mesa ao lado... Senti saudade de quando havia banana-maçã na lancheira, quando corria no intervalo das aulas, e me lembrei que eu gostava de voar nas leituras da escola.

O que eu estaria fazendo agora se nada do passado eu tivesse feito? Se o meu pai me quisesse? Se a minha mãe não confiasse em mim? Eu não sei quase nada dessa outra minha parte perdida por entre as ruas e os bairros da cidade de Uberlândia, mas sei que ela me toca em ausência. Faz-me calado e observador, permitiu que fosse honrado com todos que me ensinaram a esperar, cuidar, amar com recíproca, porque à mamãe Francisca foi permitido esse cuidado. Depois do trabalho a mamãe chegava exausta, se sentava no sofá para descansar e me colocava sobre seu regaço para acariciar as minhas costas...

Hoje, ao tomar banho para dormir, liguei minha seleção de músicas, Nina Simone cantou "Here comes the sun". Acho que não consegui conter as lágrimas do almoço e as deixei seguir o percurso de ausências sobre a minha face... Enfim, não sei o que eu seria se não a tivesse obedecido, mamãe. Mas sei que o sol virá amanhã para aquecer as nossas almas, e quero as suas mãos acarinhando minhas costas.

Comentários

Por mais humanas que sejam, as possibilidades de presença e/ou ausência de alguém, sempre vai nos emocionar. Seja pela idealização de ter sido alguém que não somos ou a eventualidade de não sermos quem fomos.

Adorei o blog.
Abraço